DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/09/2019

Vozes




tantas que falam
muitas que se calam
outras que são silenciadas
algaravia-relâmpago
e trovão
e a chuva não cai
silêncio

sobre a mesa
bocas mudas mãos imóveis
e a sala vazia:
cheia de nadas!

22/09/2019

O país de uma nota só




Não pretendo nada,
nem flores, louvores, triunfos,
nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde se possa filtrar o pensamento,
a ideia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o DOPS torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.

Tudo dó, tudo dó, tudo dó...
E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só...

Rondó da liberdade

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre...
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada
 do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

Carlos Marighella (Salvador, 1911-1969)em:
Poemas:rondó da liberdade - Edit.Brasiliense, 1994

20/09/2019

"Timão de Atenas"

Marcel Duchamps
Ouro! amarelo, reluzente, precioso ouro!

Não, deuses, não faço súplicas em vão (...)

Assim, um tanto disto tornará o preto branco,
o repugnante belo, o errado certo, o vil nobre,
o velho jovem, o covarde valente (...)

Porque isto arrancará vossos sacerdotes e servidores de vossos lados, arrebatará coxins de sob a cabeça de homens corpulentos:
 este escravo amarelo tecerá e despedaçará religiões;
abençoará os amaldiçoados; fará a alvacenta lepra adorada;
levará ladrões, dando-lhes título, reverência e aprovação,
ao banco dos senadores; isto é o que faz a desgastada
viúva casar-se novamente; a ela, para quem
o lazarento e ulcerosas feridas abririam a goela
isto perfuma e condimenta para o dia de abril novamente.
Vem, elemento danado,
tu, vulgar rameira da humanidade,
que instalas a disputa na multidão de nações (...)

Ó tu, doce regicida e caro divórcio entre filho e senhor!
tu, brilhante violador do mais casto leito de Hímen!
tu, Marte valente! tu, sempre jovem, loução,
amado e delicado sedutor, cujo rubor
derrete a neve consagrada que jaz no regaço de Diana!
tu, deus visível, que soldas impossibilidades
e fá-las beijarem-se! que falas com toda língua
para todo propósito! ó tu, contato de corações!
pensa, teu escravo, o homem, rebela-se e
por tua virtude entra em tais confusas disputas,
que as bestas poderão ter o mundo sob império.

William Shakespeare(1564-16l6)

16/09/2019

A cada um sua quimera




Sob um vasto céu cinzento, em uma vasta planície poeirenta, sem caminhos, sem grama, sem um espinho, sem um marco sequer, encontrei diversos homens que andavam curvados.
Cada um deles carregava sobre as costas uma enorme Quimera, tão pesada quanto um saco de farinha ou de carvão ou a bagagem de um soldado de infantaria romano.
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte; ao
contrário, ela abraçava e oprimia o homem com seus músculos elásticos e potentes; ela se agarrava com
suas duas longas garras ao peito de sua montaria; e
sua fabulosa cabeça cobria a fronte do homem como
um daqueles capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros esperavam aterrorizar ainda mais os inimigos.
Abordei um daqueles homens e perguntei-lhe aonde iam assim. Ele me respondeu que não sabia de nada,
nem ele, nem os outros, mas que, evidentemente, iam a algum lugar, pois eram impulsionados por uma
invencível necessidade de andar.
Coisa curiosa a se observar: nenhum daqueles viajantes parecia irritado com a besta feroz dependurada em seu pescoço e agarrada às suas costas; dir-se-ia que a consideravam como uma parte de si mesmos. Nenhum daqueles rostos cansados e austeros mostrava o menor sinal de desespero; sob a cúpula spleenética do céu, os pés
mergulhados na poeira de um terreno tão desolado
quanto aquele céu caminhavam com a fisionomia resignada daqueles que estão condenados a esperar sempre.
E o cortejo passou ao meu lado e penetrou na atmosfera do horizonte, lá onde a face arredondada do planeta escapa à curiosidade do olhar humano.
E, durante alguns instantes, obstinei-me a querer compreender aquele mistério; mas logo a irresistível
Indiferença se abateu sobre mim, e fui mais duramente oprimido por ela que aqueles viajantes por suas esmagadoras Quimeras.

Charles Baudelaire (Paris, 1821-1867)em Pequenos poemas em prosa - O spleen de Paris

07/09/2019

Preparação para a morte





A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Manuel Bandeira - Recife(PE)1886-1968