Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.
Exige a disciplina austera e rigorosa
de quem, achando pouco simplesmente ser,
requer o luxo adicional de parecer.
As essências enganam, e o eu é tão escasso
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,
e nada como a negação
pra efetuar tão delicada operação.
E pronto: está completo. O homem mais o andróide,
imune a suave mari magno e Schadenfreude,
ser e não ser na mais perfeita sintonia.
Use e abuse. A coisa vem com garantia.
Piada de câmera
A invenção da palavra
desinventa o real
e põe no lugar da coisa
um enfezado matagal -
mistura de a coisa haver
com não haver coisa tal.
E quem ao pé desse mato
tocaia algum animal
que tenha pé e cabeça
pele escama pelo ou pena
encontre mesmo é um poema
afinal.
Paulo Henriques Britto ( Rio de Janeiro, 1951) é poeta, crítico literário e tradutor.