DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/09/2021

Ece Homo

 


Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.

Exige a disciplina austera e rigorosa

de quem, achando pouco simplesmente ser,

requer o luxo adicional de parecer.


As essências enganam, e o eu é tão escasso

que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,

e nada como a negação

pra efetuar tão delicada operação.


E pronto: está completo. O homem mais o andróide,

imune a suave mari magno e Schadenfreude,

ser e não ser na mais perfeita sintonia.

Use e abuse. A coisa vem com garantia.



Piada de câmera


A invenção da palavra

desinventa o real

e põe no lugar da coisa

um enfezado matagal -

mistura de a coisa haver

com não haver coisa tal.

E quem ao pé desse mato

tocaia algum animal

que tenha pé e cabeça

pele escama pelo ou pena

encontre mesmo é um poema

afinal.


Paulo Henriques Britto ( Rio de Janeiro, 1951) é poeta, crítico literário  e tradutor.

22/09/2021

Mudando de conversa...(?)





Nas entranhas do corpo, suas, nossas dores viscerais. No pensamento, ideias que se entrelaçam por aderências que bloqueiam seu fluir. Um quebra-cabeça de difícil solução. Xeque-mate! ou morra se não conseguir desvendá-lo.                                                                 

 Um calor que sufoca e queima; um tempo estacionado que corre contra o relógio; que escala labirintos impenetráveis. Uma solidão habitada por fantasmas presentes e passados. Água que não apaga o fogo; fogo que não cauteriza, não queima a dor,  asfixia as palavras e os pensamentos.          Nos bancos da praça palavras que pulam, se estatelam no chão: pisadas, repisadas e pisoteadas por passos apressados, alheios à sua existência. Algumas têm a sorte de serem carregadas pelos pássaros. E cantam, e gorjeiam melodias que nos fazem sonhar. Os olhos pirilampam oásis de sonhos...

15/09/2021

Folhas ao vento




Amar é avermelhar-se de paixão; é corar e descorar-se em simetrias no arco-íris do nadir. E se nada é o mesmo que nadir, nada-se no seco dos olhos afogados na tempestade da dor...

As mãos, como os pés, podem fazer longas caminhadas através do som - deslizam sobre teclados de pianos, de sanfonas; seus dedos dedilham entre as cordas de um violão, nos levam além e alhures sob as cordas de um violino. As mãos são nossos retransmissores cerebrais.

Vou folheando os dedos, passando as páginas, revendo estórias escritas. Por quantas mãos? O ovo ou a serpente? O pensamento voa levando consigo ideias que não têm dono, que se multiplicam, se desdobram, e adquirem outras interpretações, outros significados: mentiras de outrora, hoje transformadas em "verdades". Mãos e pés às vezes dão passos desencontrados, por caminhos tortuosos, mas a caminhada há de prosseguir...!

14/09/2021

Caixa de pandora

 




Deram-me asas de anjo

Mas não aprendi a voar

Deram-me muitos escudos

Não aprendi a me proteger

Deram-me uma voz potente

Mas não fui capaz de gritar

Deram-me um rosto bonito

Mas não fui capaz de me ver

Deram-me armas e forças

Mas não fui capaz de lutar

Deram-me razão e luz

Mas só vi as trevas

Deram-me o brilho das estrelas

Mas fui cadente no brilhar

Deram-me um sentimento

Mas não fui capaz de amar

Então deram-me as palavras.

Foi aí que me encontrei

Virei anjo serafim e voei

Escrevi panfletos incendiários

E lutei e fiz as espadas mortas

Mostrei meu belo rosto

E gritei aos quatro cantos

Faça-se a luz! E de imediato

Vi as trevas estavam mortas

E abriram-se todas as portas

E encontrei os sentimentos

Dentro da caixa de Pandora

Mas um sentimento estava fora

Por isso

 Ainda não aprendi a amar


Marcos Campos, poeta nascido no Rio Grande do Norte.

05/09/2021

João Cabral, per saecula saeculorum...



A nuvem sobre a batalha


Não há nuvem sobre a batalha.
Nas guerras de artes, sim havia.
Hoje na nuvem está a batalha
não a chuva que a ignoraria.

Hoje, ao pensar Joaquim Cardozo
o que me disse lembro, ainda,
dia que os jornais noticiaram
a nuvem caída em Hiroshima

"Não há nuvem sobre a batalha.
Minha imagem foi abolida.
Hoje a nuvem leva navalhas
no que foi chuvada ontem-em-dia.
Da guerra em duas dimensões
em que a vitória era uma colina,
a guerra última foi de dentro:
a nuvem choveu na cozinha".


Poema

Meus olhos têm telescópios
espiando a rua
espiando minha alma
longe de mim mil metros.

Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.

Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.


Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos

E se encorpando em tela, entre todas,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, todo um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


João Cabral de Melo Neto, Recife(PE)1920-1999