A nuvem sobre a batalha
Não há nuvem sobre a batalha.
Nas guerras de artes, sim havia.
Hoje na nuvem está a batalha
não a chuva que a ignoraria.
Hoje, ao pensar Joaquim Cardozo
o que me disse lembro, ainda,
dia que os jornais noticiaram
a nuvem caída em Hiroshima
"Não há nuvem sobre a batalha.
Minha imagem foi abolida.
Hoje a nuvem leva navalhas
no que foi chuvada ontem-em-dia.
Da guerra em duas dimensões
em que a vitória era uma colina,
a guerra última foi de dentro:
a nuvem choveu na cozinha".
Poema
Meus olhos têm telescópios
espiando a rua
espiando minha alma
longe de mim mil metros.
Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.
Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos
E se encorpando em tela, entre todas,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, todo um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto, Recife(PE)1920-1999
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