DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

19/02/2025

Obliquação 2

 Farid Belkahia




Às seis horas vi as badaladas do sino passarem entre suas pernas. - Onde já se viu uma coisa dessas? Desde quando sino tem pernas? - Não sei, só sei que elas passaram correndo em disparada, como loucas. E aí deu meia-noite. Fez-se um grande clarão, e então eu vi o olho dele: era um só, no meio da testa. Eis senão quando, tudo girou - as badaladas aceleraram os passos ao mesmo tempo que entoavam uma cantoria desritmada.

A mão soltou o lápis e o pensamento voou pra bem longe. O rascunho era um palimpsesto de antanho...

11/02/2025

 




"De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos."



Trecho do romance De onde eles vêm, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977-), autor de O avesso da pele, ganhador do Prêmio Jabuti

25/01/2025

Ficção ou imaginação?

 





Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? -         Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques dos dias, os taques da noite. Noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas e doravante não será fácil atribuir um sentido a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler. Alguns dirão: quanta bobagem, que perda de tempo! Outros mais talvez perguntem: por quê então escrever? E  lhes respondo: por quê não? O cérebro está cheio de perguntas sem resposta e de respostas sem perguntas...        

15/01/2025

A Noite da Revolta

 




- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.                                                                - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.                                                        - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.                         

 - Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.                                                                 - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.                                                         - Experimente, Artur. Só esta noite.                         - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.                                                           -  Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?                                   - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.                       - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.                                                                - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!                  - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!                                                           

Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)