DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/03/2025

De outra saudade...

 




Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados.                                  Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...

19/03/2025

Nada além

 



Ninguém cantará como os galos de outrora, sumiram os ovos e os quintais; quem irá subir e descer ad eternum com uma pedra nas costas? Não há sequer um José para ser interrogado, um Sísifo, que seja para o castigo. Não houve festas, todos sumiram. E a luz também faltou.                                                                              Ovos galos quintais Sísifo José pedras rolam pelas ruas e avenidas das pequenas e grandes cidades mundo afora.                                                                                   E agora, Zeus?   

07/03/2025

Divagações

 




Nossos pensamentos mais importantes são os que contradizem nossos sentimentos.

Paul Valéry


A solidão é um mundo povoado por devaneios, uma floresta de árvores de pensamentos isolados; de espantos e desejos. Em espiral circular, num movimento côncavo-convexo tentamos ser uma crisálida para na ponta dos dedos da noite moldarmos a argila dos nossos sonhos. As palmas das mãos espalmam-se sobre as palmas dos coqueiros, e o vento sopra para aplaudi-la com as ondas que vêm do mar. 

02/03/2025

Já que é carnaval...

 




Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não consigo olhar pra ti;

o espelho está cego

a ilusão virou farelo que

a formiguinha não aguenta carregar nos ombros.

Meus olhos fechados tudo veem;

a poeira é branca

e da pedra de amolar pensamentos saltam

palavras correnteza abaixo.


O que acontece contigo, Poesia

quando te vendem a qualquer um

e esse um desaparece da face da terra

deixando apenas pinceladas

de sangue nas paredes da alma

feito natureza morta?


Sou filha do samba, do frevo e da batucada

que ecoa das primitivas cavernas

e mesmo assim não consigo decifrar

os sentimentos dos pirilampos que

saltam em círculos desconexos

fantasiados de ti, Poesia!

19/02/2025

Obliquação 2

 Farid Belkahia




Às seis horas vi as badaladas do sino passarem entre suas pernas. - Onde já se viu uma coisa dessas? Desde quando sino tem pernas? - Não sei, só sei que elas passaram correndo em disparada, como loucas. E aí deu meia-noite. Fez-se um grande clarão, e então eu vi o olho dele: era um só, no meio da testa. Eis senão quando, tudo girou - as badaladas aceleraram os passos ao mesmo tempo que entoavam uma cantoria desritmada.

A mão soltou o lápis e o pensamento voou pra bem longe. O rascunho era um palimpsesto de antanho...

11/02/2025

 




"De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos."



Trecho do romance De onde eles vêm, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977-), autor de O avesso da pele, ganhador do Prêmio Jabuti

25/01/2025

Ficção ou imaginação?

 





Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? -         Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques dos dias, os taques da noite. Noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas e doravante não será fácil atribuir um sentido a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler. Alguns dirão: quanta bobagem, que perda de tempo! Outros mais talvez perguntem: por quê então escrever? E  lhes respondo: por quê não? O cérebro está cheio de perguntas sem resposta e de respostas sem perguntas...        

15/01/2025

A Noite da Revolta

 




- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.                                                                - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.                                                        - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.                         

 - Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.                                                                 - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.                                                         - Experimente, Artur. Só esta noite.                         - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.                                                           -  Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?                                   - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.                       - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.                                                                - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!                  - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!                                                           

Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)