DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/12/2025

Dias também não...

 





Em noites quentes na janela do umbigo não passa sequer uma nesga de vento para refrescar os neurônios arrítmicos incrustados na cachola. Cachola que está fora da caixa, diga-se de passagem. Uma passagem que não passa, porque não tem porta portão porteira ou portaria, mas que por ela passam bois boiadas e até boiadeiros, por que não? E com o beneplácito do porteiro que nem sempre está presente no momento em que estoura a boiada. E aí é um tal de - não vi não senhor - não ouvi não senhor. E assim dias sim, dias não, também nós não estávamos lá. Todos cegos, surdos e mudos. Tá bom assim? Ou é melhor em banho-maria?

01/12/2025

Autonomia

 




A mão o lápis e o caderno são amigos de longa data. O lápis e o caderno andam sempre um ao lado do outro, e sempre ao alcance da mão, que anda para lá e para cá, sempre sobrecarregada, mil afazeres! Tudo por conta do pensamento, o comandante de todos, é o que supomos, porque o lápis, quando desenha as letras fala mais de si do que do texto.

06/11/2025

Inutilidade...!?

 




Caminho imóvel, calada. Mesmo com todas as portas e janelas  fechadas sinto um cheiro podre no ar; vejo a fumaça de olhos fechados, um rio de sangue além fronteiras espalhando-se nas ruas das cidades. Ai! até arderam meus pulmões. Tantas línguas são faladas no mundo! quantas vozes são ouvidas? Sherazade simboliza a poesia do Iraque, onde também viveram os quarenta ladrões, hoje espalhados mundo afora...Uns criam a guerra, outros tentam abafar o estrondo dos seus canhões. Genocídios, holocaustos, erros repetidos, lições não aprendidas.

O quê fazem com a poesia dos seus poetas?

28/10/2025

Três poemas de OLGA SAVARY *

 




Amanhã


Se devoras teus sonhos

quando se ensaiam apenas

e secamente represas

essa linguagem de flores

e teu desejo de asas

que restam subterrâneas,

quem será tu, depois

do grande sono, amanhã?


Não te abandones um só momento

sou inconstante como a nuvem

sou mutável como o vento.

Não te dês inteiro um só momento

porque um dia te quererás de volta

e levarás somente um fragmento.


Auto despedida


Há algo nas manhãs que não entendo agora

e a um grito de minhas pernas não atendo.

Ainda depois da noite, noite me espia

e sonho dúvidas enormes e imóveis

como a imobilidade das aranhas.

Tão pouco tempo - e tenho de deixar-me

e queria nunca ter de repartir-me.

Começa a raiva da saudade que inventei vou ter de mim.


Sextilha Camoniana


Daqui dou o viver já por vivido.

Quero estar quieta, sozinha agora,

igual a uma cobra de cabeça chata,

ficar sentada sobre meus joelhos

como alguém coagulado em outra margem.

Daqui dou o viver já por vivido.



* Olga Savary nasceu em Belém(PA)em 1933. O pai era russo e a mãe paraense. Foi poeta, romancista, contista e tradutora de mais de 40 obras de literatura hispano-americana, como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Pablo Neruda, Carlos Fuentes, entre outros. Ficou conhecida como a primeira mulher brasileira a publicar um livro de poemas eróticos. Foi casada com o cartunista Jaguar, com que teve dois filhos. Faleceu em 2020 em Teresópolis(RJ).

05/10/2025

Equilibrista




Chamava-se Aurora até o dia em que de repente o sol desamarelou-se, e ela então tornou-se Beatriz. Vida vai, vida não volta; Aurora caiu do cavalo grego, Beatriz ficou por um fio de arame. Hoje dança na corda bamba de um salão azul a ver se fatura alguns trocados, ao lado do piano quebrado que toca apenas a nota Dó.

Todos os dias são iguais, mas são diferentes...

28/09/2025

Que eu me livre...

 de ideias retrógradas, de "pensadores" negacionistas e obtusos; de atitudes reacionárias, racistas e homofóbicas.

Que eu aprenda a retirar o véu que encobre a vida, para perceber que ela é dinâmica, e está sempre em movimento; que eu consiga ver que o mundo é diverso, variável, diferente e infinito.

16/09/2025

E eu então...!?

 


"Papel , amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia.

Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que

eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem

depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, po -

dem cuidar que te confio cuidados de amor.

Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha

mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado,  entre  a

rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que  podes

achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que     ele

chegue. virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios."


Machado de Assis em Memorial de Aires.

30/08/2025

A palavra e o mar





Às vezes fico dias e dias diante de uma página em branco como se estivesse diante do mar; não consigo pensar em nada, ouço apenas a canção silenciosa  das águas ou o barulho da sua turbulência. As palavras, quando querem vêm aos borbotões quase saindo pela boca, como se fossem pular das mãos adiantando-se aos traços do lápis ou aos toques do teclado, aceleram
os batimentos cardíacos, fazem um baticum danado até virem à tona pruma página. Inesperadamente recolhem-se, ficam taciturnas, deprimidas e até chorosas: não querem sair. Tornam-se sombras, invisíveis. Fugidias como as ondas, vão e voltam, mas já não são as mesmas, mudam de roupagem. E cheias de mistérios - talvez a palavra vez ou outra se transforme numa pedra no meio do pensamento e tenha que ficar um bom tempo em frente ao mar pra ver se consegue pular para a página de um caderno!

21/08/2025

Perguntas...

 





As pedras estavam no meio da ponte; a ponte caiu, as pedras afundaram no rio que segue tranquilo e caudaloso. Quem atirou a primeira pedra? Quantos tropeçaram, quantas cabeças foram quebradas? Quem escondeu a mão depois de atirar a primeira pedra?

Jabuti não sobe em árvore assim como pedras não caminham, mas as Geni sempre sabem quem as atira...!

06/08/2025

De Maquiavel

 




Quando chega a noite, volto para casa e vou para meu estúdio. No umbral, tiro as roupas do dia, enlameadas e suarentas, e visto paramentos dignos de corte ou palácio, e, nesses trajes mais graves, penetro nos recintos dos antigos e sou recebido por eles, e ali provo do alimento que me é mais afeito, para o qual nasci. Ali ouso falar-lhes e perguntar sobre os motivos de seus atos, e eles me respondem com toda humanidade. E por quatro horas esqueço este mundo, não lembro dos aborrecimentos, não temo a pobreza, não tremo diante da morte: sou parte daquele mundo. (Nicolau Maquiavel -Florença 1469-1527)

No final do século XV Maquiavel tentava exercitar sua memória entre os livros de sua preferência, geralmente à noite, quando o leitor, segundo ele, sentia-se mais íntimo dos livros, e com o pensamento mais livre.


Niccolò di Bernardo dei Machiavelli

Florença(Itália) 1469-1527

26/07/2025

Invencionice

 




Tinha asas duplas escondidas sob a sombra do sol na parede; duas delas se foram com o pensamento que voou até amarelecer a tarde que teimava em não anoitecer. Quando a noite caiu sobre a cidade, voltaram porque as estrelas haviam pousado sobre si: cada uma foi para o seu lado e o pensamento continuou voando. Planando sobre a cidade deu de cara com uma nuvem de predadores - urubus gaviões e carcarás. Devido ao acinzentado da hora concluiu ser melhor fechar as asas, e acordar!

10/07/2025

OBLIQUIDADE

 




Andava sempre em linha reta. Não se dobrava. Desdobrava-se. Se caía, era em pé. Certo dia foi dobrado e envelopado numa esquina. Paralelepipedou-se em quadriláteros caleidoscópicos só porque ouviu o cantar de um galo vindo não sabia ao certo de onde.    O que se sabe é que o galo está sendo cozido em banho-maria já que os quintais estão  desaparecendo!

30/06/2025

Do pensar

 




Pensando sobre os pensamentos armazenados nesta imensa máquina que é o nosso cérebro, percebo que muitas ideias estarão perdidas para sempre nesse emaranhado de infinitas conexões sinápticas. O agora será imediatamente o passado daqui a um segundo e o futuro já será hoje; tudo é muito rápido, embora existam muitas coisas que andam a passos de tartaruga.Uma tartaruga pode viver muito mais do que os humanos: até 300 anos!, devagar e sempre, enquanto nós estamos tão mecanicamente cada dia mais acelerados que esbarramos logo ali: isso foi ontem? Quem foi que viu? Como disse o poeta e filósofo italiano Giacomo Leopardi, Vai-me apertando amargo o coração se penso em como tudo passa e passa quase sem deixar rastro.

 

19/06/2025

Sem resposta









A pergunta que a boca não responde:
 - O que posso sonhar? 
Na curva da estrada que bifurcou-se, muitas palavras se dispersaram; alonguei-me por caminhos já conhecidos. Perdi o voo do pássaro que me levaria para além de mim...Pedaços de estórias, retalhos e tijolos empilhados nas prateleiras da memória apenas testemunham o quanto  viver é provisório...



02/06/2025

Desmonte

 




Um faz de conta onde o hoje já é o amanhã, onde o que era um conto da carochinha é a mais dura realidade. Você vai sem querer, e não volta jamais porque a travessia é longa, cheia de idas e vindas pela estrada, mas sem retorno. Você sai pra ganhar a vida e ela te consome sem que te apercebas que ela é cheia de veredas, de encruzilhadas e labirintos e, de perdas irrecuperáveis. E como você pensa, ou melhor, imagina que viverá sempre protegido como se ainda estivesse na placenta da mamãe, como se pudesse viver eternamente em berço esplêndido, a bolha era de borracha! Ou era de vidro? Não sei. Dizem as más línguas que era de sabão...!

21/05/2025

"Alcóolicas"

 




É crua a vida, alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida

Como um naco de víbora,

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida,

Lavo-me no estreito-pouco do meu corpo,

Lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua.

Como o bico dos corvos,

E podia ser tão generosa e, mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida.

A vida é líquida


Hilda Hilst - Jaú(SP) 1930-2004

28/04/2025

" Recuerdos "




Ainda era uma criança quando o sol pôs-se a cair. Carregava-o entre os dedos ignorando os perigos do fogo, sem conhecer as dores e as cicatrizes que seus raios deixariam; ouvia o galo cantar e cantarolava sua própria canção. Entre o sol e a lua confundia a noite com o dia. Acabou perdendo a linha quando a agulha escorregou de sua mão: sua boca foi ficando larga como uma saia desfranzida cujos pontos se soltaram da barra e começaram a deslizar sobre o amplo e interminável salão da linguagem...

19/04/2025

(Des)conversa

 

René Magritte



- Olá, como vai?, comeu muitos sonhos? Quero dizer, de valsa...Se foram sonhos, continue dormindo, mas amanhã acorde! Se de valsa, então dance, isto é, o tempo da valsa já passou, não há mais castelos encantados, nem príncipes! Se pelos menos ainda existissem sapos...Mas até os sapos estão em extinção...!?

- Foi, não foi?

10/04/2025

Entardesquecer

 


Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...  

06/04/2025

Dois poemas de Paulo Henriques Britto

 




Dentro da noite por fim construída

há tempo para tudo, e muito espaço.

Longas janelas. 

Cortinas corridas.

Nos armários vazios,

grandes chumaços de algodão

a preencher cada centímetro e gaveta.

Na parede, um termômetro no qual

ninguêm dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados

de palavras que escorrem devagar,

formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,

os cômodos esperam o raiar de

alguma coisa como um dia. Ou não.

( de Nenhum mistério, 2018)


Toda vida é provisória,

todo poema é fragmento.

Cada dia, cada hora, cada verso

é só um momento de alguma totalidade

que você sequer concebe.

Viva e escreva e não se abale.

Você não é o que você escreve.

( de Fim de verão, 2022)


Paulo Henriques Britto, nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É poeta, contista e tradutor.

29/03/2025

De outra saudade...

 




Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados.                                  Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...

19/03/2025

Nada além

 



Ninguém cantará como os galos de outrora, sumiram os ovos e os quintais; quem irá subir e descer ad eternum com uma pedra nas costas? Não há sequer um José para ser interrogado, um Sísifo, que seja para o castigo. Não houve festas, todos sumiram. E a luz também faltou.                                                                              Ovos galos quintais Sísifo José pedras rolam pelas ruas e avenidas das pequenas e grandes cidades mundo afora.                                                                                   E agora, Zeus?   

07/03/2025

Divagações

 




Nossos pensamentos mais importantes são os que contradizem nossos sentimentos.

Paul Valéry


A solidão é um mundo povoado por devaneios, uma floresta de árvores de pensamentos isolados; de espantos e desejos. Em espiral circular, num movimento côncavo-convexo tentamos ser uma crisálida para na ponta dos dedos da noite moldarmos a argila dos nossos sonhos. As palmas das mãos espalmam-se sobre as palmas dos coqueiros, e o vento sopra para aplaudi-la com as ondas que vêm do mar. 

02/03/2025

Já que é carnaval...

 




Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não consigo olhar pra ti;

o espelho está cego

a ilusão virou farelo que

a formiguinha não aguenta carregar nos ombros.

Meus olhos fechados tudo veem;

a poeira é branca

e da pedra de amolar pensamentos saltam

palavras correnteza abaixo.


O que acontece contigo, Poesia

quando te vendem a qualquer um

e esse um desaparece da face da terra

deixando apenas pinceladas

de sangue nas paredes da alma

feito natureza morta?


Sou filha do samba, do frevo e da batucada

que ecoa das primitivas cavernas

e mesmo assim não consigo decifrar

os sentimentos dos pirilampos que

saltam em círculos desconexos

fantasiados de ti, Poesia!

19/02/2025

Obliquação 2

 Farid Belkahia




Às seis horas vi as badaladas do sino passarem entre suas pernas. - Onde já se viu uma coisa dessas? Desde quando badalada de sino tem pernas? - Não sei, só sei que elas passaram correndo em disparada, como loucas. E aí deu meia-noite. Fez-se um grande clarão, e então eu vi o olho dele: era um só, no meio da testa. Eis senão quando, tudo girou - as badaladas aceleraram os passos ao mesmo tempo que entoavam uma cantoria desritmada.

A mão soltou o lápis e o pensamento voou pra bem longe. O rascunho era um palimpsesto de antanho...

11/02/2025

 




"De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos."



Trecho do romance De onde eles vêm, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977-), autor de O avesso da pele, ganhador do Prêmio Jabuti

25/01/2025

Ficção ou imaginação?

 





Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? -         Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques dos dias, os taques da noite. Noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas e doravante não será fácil atribuir um sentido a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler. Alguns dirão: quanta bobagem, que perda de tempo! Outros mais talvez perguntem: por quê então escrever? E  lhes respondo: por quê não? O cérebro está cheio de perguntas sem resposta e de respostas sem perguntas...        

15/01/2025

A Noite da Revolta

 




- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.                                                                - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.                                                        - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.                         

 - Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.                                                                 - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.                                                         - Experimente, Artur. Só esta noite.                         - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.                                                           -  Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?                                   - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.                       - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.                                                                - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!                  - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!                                                           

Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)