DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)
19/06/2025
Sem resposta
02/06/2025
Desmonte
Um faz de conta onde o hoje já é o amanhã, onde o que era um conto da carochinha é a mais dura realidade. Você vai sem querer, e não volta jamais porque a travessia é longa, cheia de idas e vindas pela estrada, mas sem retorno. Você sai pra ganhar a vida e ela te consome sem que te apercebas que ela é cheia de veredas, de encruzilhadas e labirintos e, de perdas irrecuperáveis. E como você pensa, ou melhor, imagina que viverá sempre protegido como se ainda estivesse na placenta da mamãe, como se pudesse viver eternamente em berço esplêndido, a bolha era de borracha! Ou era de vidro? Não sei. Dizem as más línguas que era de sabão...!
21/05/2025
"Alcóolicas"
É crua a vida, alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida
Como um naco de víbora,
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida,
Lavo-me no estreito-pouco do meu corpo,
Lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua.
Como o bico dos corvos,
E podia ser tão generosa e, mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida.
A vida é líquida
Hilda Hilst - Jaú(SP) 1930-2004
28/04/2025
" Recuerdos "
Ainda era uma criança quando o sol pôs-se a cair. Carregava-o entre os dedos ignorando os perigos do fogo, sem conhecer as dores e as cicatrizes que seus raios deixariam; ouvia o galo cantar e cantarolava sua própria canção. Entre o sol e a lua confundia a noite com o dia. Acabou perdendo a linha quando a agulha escorregou de sua mão: sua boca foi ficando larga como uma saia desfranzida cujos pontos se soltaram da barra e começaram a deslizar sobre o amplo e interminável salão da linguagem...
19/04/2025
(Des)conversa
René Magritte
- Olá, como vai?, comeu muitos sonhos? Quero dizer, de valsa...Se foram sonhos, continue dormindo, mas amanhã acorde! Se de valsa, então dance, isto é, o tempo da valsa já passou, não há mais castelos encantados, nem príncipes! Se pelos menos ainda existissem sapos...Mas até os sapos estão em extinção...!?
- Foi, não foi?
10/04/2025
Entardesquecer
Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...
06/04/2025
Dois poemas de Paulo Henriques Britto
Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas.
Cortinas corridas.
Nos armários vazios,
grandes chumaços de algodão
a preencher cada centímetro e gaveta.
Na parede, um termômetro no qual
ninguêm dá corda há muito tempo.
Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.
É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar de
alguma coisa como um dia. Ou não.
( de Nenhum mistério, 2018)
Toda vida é provisória,
todo poema é fragmento.
Cada dia, cada hora, cada verso
é só um momento de alguma totalidade
que você sequer concebe.
Viva e escreva e não se abale.
Você não é o que você escreve.
( de Fim de verão, 2022)
Paulo Henriques Britto, nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É poeta, contista e tradutor.
29/03/2025
De outra saudade...
Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados. Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...
19/03/2025
Nada além
Ninguém cantará como os galos de outrora, sumiram os ovos e os quintais; quem irá subir e descer ad eternum com uma pedra nas costas? Não há sequer um José para ser interrogado, um Sísifo, que seja para o castigo. Não houve festas, todos sumiram. E a luz também faltou. Ovos galos quintais Sísifo José pedras rolam pelas ruas e avenidas das pequenas e grandes cidades mundo afora. E agora, Zeus?
07/03/2025
Divagações
Nossos pensamentos mais importantes são os que contradizem nossos sentimentos.
Paul Valéry
A solidão é um mundo povoado por devaneios, uma floresta de árvores de pensamentos isolados; de espantos e desejos. Em espiral circular, num movimento côncavo-convexo tentamos ser uma crisálida para na ponta dos dedos da noite moldarmos a argila dos nossos sonhos. As palmas das mãos espalmam-se sobre as palmas dos coqueiros, e o vento sopra para aplaudi-la com as ondas que vêm do mar.
02/03/2025
Já que é carnaval...
Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não consigo olhar pra ti;
o espelho está cego
a ilusão virou farelo que
a formiguinha não aguenta carregar nos ombros.
Meus olhos fechados tudo veem;
a poeira é branca
e da pedra de amolar pensamentos saltam
palavras correnteza abaixo.
O que acontece contigo, Poesia
quando te vendem a qualquer um
e esse um desaparece da face da terra
deixando apenas pinceladas
de sangue nas paredes da alma
feito natureza morta?
Sou filha do samba, do frevo e da batucada
que ecoa das primitivas cavernas
e mesmo assim não consigo decifrar
os sentimentos dos pirilampos que
saltam em círculos desconexos
fantasiados de ti, Poesia!
19/02/2025
Obliquação 2
Farid Belkahia
Às seis horas vi as badaladas do sino passarem entre suas pernas. - Onde já se viu uma coisa dessas? Desde quando sino tem pernas? - Não sei, só sei que elas passaram correndo em disparada, como loucas. E aí deu meia-noite. Fez-se um grande clarão, e então eu vi o olho dele: era um só, no meio da testa. Eis senão quando, tudo girou - as badaladas aceleraram os passos ao mesmo tempo que entoavam uma cantoria desritmada.
A mão soltou o lápis e o pensamento voou pra bem longe. O rascunho era um palimpsesto de antanho...
11/02/2025
"De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos."
Trecho do romance De onde eles vêm, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977-), autor de O avesso da pele, ganhador do Prêmio Jabuti.
25/01/2025
Ficção ou imaginação?
Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? - Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques dos dias, os taques da noite. Noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas e doravante não será fácil atribuir um sentido a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler. Alguns dirão: quanta bobagem, que perda de tempo! Outros mais talvez perguntem: por quê então escrever? E lhes respondo: por quê não? O cérebro está cheio de perguntas sem resposta e de respostas sem perguntas...
15/01/2025
A Noite da Revolta
- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir. - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver. - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.
- Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada. - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho. - Experimente, Artur. Só esta noite. - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito. - Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant? - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant. - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais. - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro! - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!
Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)