Foi andando para o passado...Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trás - tinha então, 16 anos - ressurgiu-lhe a cidadezinha onde
encontrara Duília. Aí parou. E Duília lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito com que uma moça pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio
do sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
{.}
Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colunas
da outra margem lhe recordavam a presença corporal da moça. Às vezes chegava a dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas comprazia-se
na evocação.
{.}
O que mais o espantara no gesto de Duília - recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro - foi a gratuidade inexplicável e a absurda pureza.
Ela era moça recatada, ele um rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal
se conheciam. A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse - Quer ver? - Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete - Quer ver mais? - E mostra-lhe o outro seio, branco, branco. E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...
Só isso. Durou alguns segundos, está durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do alumbramento, avistara Duília. A moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento.
Aníbal Machado, Sabará-MG (1894-1964)