DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

25/07/2009

"Viagem aos Seios de Duília"


Foi andando para o passado...Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trás - tinha então, 16 anos - ressurgiu-lhe a cidadezinha onde
encontrara Duília. Aí parou. E Duília lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito com que uma moça pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio
do sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
{.}
Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colunas
da outra margem lhe recordavam a presença corporal da moça. Às vezes chegava a dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas comprazia-se
na evocação.
{.}
O que mais o espantara no gesto de Duília - recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro - foi a gratuidade inexplicável e a absurda pureza.
Ela era moça recatada, ele um rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal
se conheciam. A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse - Quer ver? - Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete - Quer ver mais? - E mostra-lhe o outro seio, branco, branco. E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...
Só isso. Durou alguns segundos, está durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do alumbramento, avistara Duília. A moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento.


Aníbal Machado, Sabará-MG (1894-1964)

4 comentários:

  1. Pena que retornar ao passado nunca acabe bem. Damos sempre de cara com a realidade do passar dos anos e dos tempos que já não existem. Mas é tão bom de vez em quando retornar... Este texto é incrível, não é?
    boa semana,
    beijos

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  2. Há grandes escritores brasileiros desses tempos.

    Sempre os leio com grande paixão.

    Cumprimentos

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  3. Oláá!!

    Depois de um monte de coisas pra fazer ocupando meu tempo, apareceu um tempo e cá estou!

    Lendo a sua postagem, a primeira coisa que me veio a cabeça (pensamento meio óbvio) é: "Como as coisas mudaram!" rs

    FaloU!

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  4. Que bonito!
    Poético, começando pelo som do nome Duília.
    Um sentimento embora de desejo da lembrança e na lembrança, refinado na expressão.
    Será que ainda acontecem cenas assim como a da procissão?

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