DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/03/2010

Árvores...


Árvore do Fogo

certas famílias as das folhas de árvore
sentam-se perto da fonte
cortam a terra das lágrimas
lêem para a água o livro do fogo
minha família não esperou minha vinda
foi-se
nem fogo nem rastro

Árvore das entranhas


nos prados da tristeza na grama desenho meus dias de pedra
quebrando a lâmina dos espelhos entre o sol do meio-dia e a água na poça adâmica
meus anos emigram como a fome no bosque das entranhas
os anos
eu vi os seus bicos entrelaçarem-se fundirem-se no bosque das entranhas
entre seus ninhos eternais

Adonis, poeta árabe - 1929 -

28/03/2010

As Cores...



Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia. Esboçou um sorriso...Sabia estar só na casa que conhecia tão bem, em seus mínimos detalhes, casa grande de vários quartos e salas onde se movia livremente, as mãos olhando por ela, o passo calmo, firme e silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu,
mundo em que a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das outras vidas de ilimitados horizontes.
Como seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam , quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados,
palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o claro,
afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição social? Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? É branco? Raramente se enganava agora. Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes, pelo olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes - e aquilo a perturbava - encontrasse também a cor social mais nobre no trato das panelas e na limpeza da casa. Nas paredes, porém, nos objetos, já não sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas estatuetas, vinha sempre conjugado à ideia de beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa polonaise de Chopin, na voz de uma cantora, num gesto de ternura humana.
[........................................]
O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgava que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela maneira de agir o sabia. E alí começara a odiar os dois mundos diferentes. O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor.
[..............................................]
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado. De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara horrorizado:
- Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca!
Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores... Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz ía contar-lhe o filme todo, com certeza. O rumor - passos e vozes - encheu a casa.
- Tudo azul? - perguntou Ana Beatriz, entrando na sala.
- Tudo azul - respondeu Maria Alice.


Trechos do conto "As Cores", de Orígenes Lessa, jornalista, contista e romancista.
Lençóis Paulista(SP) - 1903-1986

24/03/2010

"No meio da noite..."

Hans Varella, escultor cubano
Tu não percebes, mas o teu corpo
permanece
Tu nada sentes, mas o teu corpo se
transforma
Tu falas e o teu corpo faz
Tu vês, ele não vê
Tu caminhas e ele marca passo
Tu saboreias e ele só digere
Tu te ris enquanto ele sorri
Tu adormeces e ele cai no sono

Ele não descobre que mudaste
em teu pensar
Tu não descobres a mudança
funda de suas forças
(1910)

No meio da noite
abrí a janela para a sebe
e me debrucei sobre a forma do luar
sobre a forma da noite sem limites
E eis que um não-sei-quê roçou o meu
espírito
e eu não pude apanhar essa alma de
minha alma
Talvez uma lembrança
morta antes mesmo de não ser mais
nada
além destas palavras
(1936)
"Se me interrogam, se se inquietam (como acontece, às vezes muito vivamente) acerca do que eu 'quis dizer' em tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse..."
Paul Valéry, poeta, ensaísta e filósofo francês (187l-1945)

21/03/2010

A mulher e a serpente...



Longa é a relação de ódio e amor entre a mulher e a serpente, desde os tempos bíblicos, quando as pessoas separavam os mares com uma espécie de vareta mágica. Arqui-inimigas, incendiadas entre os objetos como desejo e descendência.
Insípido e pleno de vontades absolutamente naturais, o macho não se presta a estas pequenas contendas.
Mas no meio do paraíso irremediável, Eva Maria esmagou a cabeça da serpente. Para que o movimento de sua língua não mais lhe deixasse predisposta ao conhecimento, para que a cobra não lhe desse mais prazer e para que a mulher não se apartasse mais do homem.
Afinal, depois de andar sobre as águas, ascender aos céus e multiplicar os pães, o próximo passo seria ser promovida e transformar água em vinho, esses milagres da culinária moderna.


Extraído de "Métodos extremos de sobrevivência", da escritora, jornalista e atriz, Márcia Bechara, natural de Belo Horizonte e radicada em São Paulo. É autora também de "Alegorias para Dinorah" e "Casa das Feras".

16/03/2010

Cadeira de Balanço


Caso de Secretária

Foi trombudo para o escritório. Era dia de seu aniversário, e a esposa nem sequer o abraçara, não fizera a mínima alusão à data. As crianças também tinham se esquecido. Então era assim que a família o tratava? Ele que vivia para os seus, que se arrebentava de trabalhar, não merecer um beijo, uma palavra ao menos!
Mas, no escritório, havia flores à sua espera, sobre a mesa. Havia o sorriso e o abraço da secretária, que poderia muito bem ter ignorado o aniversário, e entretanto o lembrara. Era mais do que uma auxiliar, atenta, experimentada e eficiente, pé-de-boi da firma, como até então a considerara; era um coração amigo.
Passada a surpresa, sentiu-se ainda mais borocochô: o carinho da secretária não curava, abria ainda mais a ferida. Pois então uma estranha se lembrava dele com tais requintes, e a mulher e os filhos, nada? Baixou a cabeça, ficou rodando o lápis entre os dedos, sem gosto para viver.
Durante o dia, a secretária redobrou de atenções. Parecia querer consolá-lo, como se medisse toda a sua solidão moral, o seu abandono. Sorria, tinha palavras amáveis, e o ditado da correspondência foi entremeado de suaves brincadeiras da parte dela.
'O senhor vai comemorar em casa ou numa boate?'
Engasgado, confessou-lhe que em parte nenhuma. Fazer anos é uma droga, ninguém gostava dele neste mundo, iria rodar por aí, à noite, solitário, como o lobo da estepe.
'Se o senhor quisesse, podíamos jantar juntos', insinuou ela, discretamente.
E não é que podiam mesmo? Em vez de passar uma noite besta, ressentida - o pessoal
lá em casa pouco está me ligando - teria horas amenas, em companhia de uma mulher que - reparava agora - era bem bonita.
Daí por diante o trabalho foi nervoso, nunca mais que se fechava o escritório. Teve vontade de mandar todos embora, para que todos comemorassem o seu aniversário,
ele principalmente. Conteve-se, no prazer ansioso da espera.
- Onde prefere ir? - perguntou ao saírem.
- Se não se importa, vamos passar primeiro no meu apartamento. Preciso trocar de roupa.
Ótimo, pensou ele; faz-se a inspeção prévia do terreno e, quem sabe?
- Mas antes quero um drinque, para animar - ela retificou. Foram ao drinque, ele recuperou não só a alegria de viver e de fazer anos, como começou a fazê-los pelo avesso, remoçando. Saiu bem mais jovem do bar, e pegou-lhe do braço.
No apartamento, ela apontou-lhe o banheiro e disse-lhe que o usasse sem cerimônia. Dentro de quinze minutos ele poderia entrar no quarto, não precisava bater - e o sorriso dela, dizendo isso, era uma promessa de felicidade.
Ele nem percebeu ao certo se estava se arrumando ou se desarrumando, de tal modo que os quinze minutos se atropelaram, querendo virar quinze segundos, no calor escaldante do banheiro e da situação. Liberto da roupa incômoda, abriu a porta do quarto.
Lá dentro, sua mulher e seus filhos, em coro com a secretária, esperavam-no cantando "Parabéns pra você".

Carlos Drummond de Andrade - Cadeira de Balanço - Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguiar, 1988.

14/03/2010

Ave, Poesia! A alma de alguns poetas...


Adélia Prado


Exausto


Eu quero uma licença de dormir

perdão pra descansar horas a fio

sem ao menos sonhar a leve palha

de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida foi o sono

profundo das espécies, a graça

de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes.




Affonso Manta


A Poesia

A poesia tem os olhos inocentes

Inocentes de saberem tudo

A poesia nos envolve

como o silêncio do tempo que passa

A poesia é um pássaro branco

voando na velocidade da luz

A poesia embriaga como o vinho

e nos mantém vivos como o ar

A poesia é um rio imenso

um rio que deságua no infinito

A poesia é um mar profundo,

profundo como o mistério da vida






Florbela Espanca


Poetas


Ai, as almas dos poetas

não as entende ninguém;

são almas de violetas

que são poetas também.


Andam perdidas na vida,

como as estrelas no ar;

sentem o vento gemer

ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito

dores amargas e secretas

é que em noites de luar

pode entender os poetas


E eu que arrasto amarguras

que nunca arrastou ninguém

tenho a alma pra sentir

a dos poetas também!





Olavo Bilac



foi numa noite de agosto

que apareceu a tal lua

os lábios naquela água

o corpo dado aos amantes

amantes não sabem nada

que há tempos não se via

a gargalhada menina

da lua de rica rima

poetas que não se fiem

poetas nada sabem

que é até mesmo uma pena

que esta caneta tão prima

não seja feita mais fina

como ponta de um punhal

11/03/2010

A lenda de Fausto

Ilustr. de Retzsch p/a Segunda Parte de "Fausto"

Sublime Gênio, tens-me dado tudo,
Tudo o que eu te pedí. Não me mostraste
Em vão, dentro do fogo, o teu semblante,
Por reino deste-me a infinita Natureza,
E forças por sentí-la, penetrá-la.
Não me outorgaste só contato estranho e frio,
Deixaste-me sondar-lhe o fundo seio,
Como se fosse o peito de um amigo.
Expões-me a multidão dos seres vivos,
E a conhecer, na plácida silveira,
Nos ares, na água, os meus irmãos ensinas.
E quando o furacão no mato ruge,
Desmoronando-se, o gigante pinho
Vizinhos troncos e hastes espedaça,
E, troando, o morro a queda lhe acompanha;
Então me levas à tranquila gruta,
Revelas-me a mim mesmo, e misteriosos
Prodígios se abrem dentro do meu peito.
E, suavizante, ala-se-me ante o olhar
A lua límpida: flutuantes surgem
Das rochas úmidas, do argênteo bosque,
Alvas visões de antanho, a mitigar
O prazer austero da contemplação.
("Floresta e Gruta")

Da sabedoria é conclusão superior:
Faz jus à liberdade e à sua existência
só quem diariamente a conquistar com destemor.
Cercado de perigos é assim a vivência
Dessas crianças, adultos e velhos a se agitar.
Gostaria eu de tal multidão vislumbrar
E conviver com homens livres em terra livre
Para poder dizer ao momento fugaz:
Continua aqui. És belo! Não te vás!
Os vestígios de meus dias, na Terra passados,
Nem em milênios poderão ser apagados.

Georg Faust, ilustração de Rembrandt

A figura lendária de Fausto aparece no século XVI. As informações são escassas, incompletas e controvertidas. O local de seu nascimento é atribuído a Knittlingen,(Alemanha), onde se encontra o Faust-Museum. Também a data de seu nascimento é controvertida, pois há fontes que afirmam ter acontecido em 1466, outras em 1478 ou em 1480, 1481. Entretanto, há um consenso de que Fausto teria estudado alquimia, astrologia, magia e vidência. Seu desejo maior teria sido abarcar todos os conhecimentos de sua época, invocando Mefistófeles (o demônio ou "o inimigo da luz"), com quem negocia para viver vinte e quatro anos sem envelhecer. Durante esse período, o diabo serviria a Fausto, recebendo sua alma em troca. Ao final desse vinte e quatro anos, seria então levado para o inferno. Mas nesse intervalo de anos, surge, inesperadamente, a figura de Margarida, por quem se apaixona e a quem recorre para salvá-lo do contrato que foi assinado com seu próprio sangue. Seu destino porém, já estava traçado inevitavelmente.
A lenda de Fausto é considerada um arquétipo (um modelo, um exemplo)da alma humana, tendo despertado interesses de artistas, músicos, poetas, dramaturgos.
Em 1587, Johan Spiess, livreiro e escritor de Frankfurt am Mein, faz a primeira narrativa literária dessa personagem no "Livro Popular", onde o indivíduo está disposto a aliar-se a Mefistófeles para "especular os elementos...dia e noite, pretendendo descobrir os fundamentos de tudo, tanto no céu quanto na terra." Em 1589 o escritor e dramaturgo inglês Christopher Marlowe(1563-1593), apresenta numa peça teatral ("História trágica do Doutor Fausto") o dilema do novo homem ocidental, dividido entre a religiosidade medieval e o humanismo renascentista. A personagem torna-se desse modo uma figura recorrente no decorrer de cinco séculos da literatura ocidental. Contudo, a expressão máxima dessa personalidade tão controvertida é-nos apresentada pelo poeta Johan Wolfgang Goethe (1749-1832), através de sua obra-prima "Fausto", que se estende por 12.111 versos, que no dizer de Erwin Theodor, nos apresenta "as principais conquistas intelectuais, realizadas na Antiguidade, Idade Média e Renascimento".

Fotos e fonte de pesquisa - wikimedia - "Fausto" - tradução de Jenny Klabin Segall (1981)

04/03/2010

Dois poemas...



Alma (des) encontrada


Arranquei os espinhos do teu corpo
com os dentes
e lambí meus lábios
com os tentáculos de minhas mãos vazias.
Arranquei os dentes de teus espinhos
e pisei as tuas curvas de serpente
que me furaram a pele
e me deixaram surdo.

Arranquei o corpo dos teus espinhos
e a essência do teu perfume
cegou-me o ego.

Arranquei os espinhos do teu corpo
com os dentes
e tento sair do labirinto
de não ser mais eu.





Marataoã



O rio corre em meu coração
e separa os sentimentos da areia.
A vaga da água vai
virando pó em pensamento
e a estrada encurta distâncias.

O rio viaja no horizonte
onde dançam os cabelos das carnaúbas
e soluçam os olhos do sol.

O rio corre em meu coração
e deságua nas correntezas do caminho.


Dilson Lages Monteiro, poeta piauiense, nascido em Barras do Marataoã em
1973. É autor de "Os olhos do silêncio", "O sabor dos sentidos" "+ Hum " (poemas)