DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/11/2012

Festa na aldeia


Henri Matisse
 
 
Correm pelos vales do nada subindo em montes vazios tentando encontrar o Sol.
São magras, sulcadas de caminhos azuis de encruzilhadas vias expressas  as mãos  que conduzem ao castelo da desilusão. Demonstram friamente o desencanto dessa aldeia habitada por  ensimesmadas  e
enrijecidas criaturas moldadas  pelo gelo que sobre elas cai lenta e inexoravelmente.
Bonecos de neve vão se formando sobre essa paisagem urbana criando uma imensa vitrine de seres inanimados.  Nas aldeias vizinhas muitos já se organizam desenfreadamente em busca de lenha para
suas  fogueiras de vaidades! Haverá fogos de artifícios rojões e ranger de dentes regados a Moet et Chandon  e seus estampidos.
E todos cantarão alegremente  gingo bel  erguendo as mãos aos céus para que tudo permaneça como sempre esteve.
 
Amendoim!!!

21/11/2012

A razão da semelhança

 
Henri Matisse
 
 
Na grande sala da memória está um rosto ausente
há apenas um leito
e um homem sem rosto.
 
Um rosto é uma direção imprecisa.
 
Um corpo é para ser tocado
é uma suíte de dança
uma variação de um tema em fuga.
 
Um rosto é algo que se espera
na inquietação de um corpo
um ângulo
um poliedro
em que os diedros se interceptam.
 
A projeção da vertical sobre um plano
é apenas um ponto
um ponto em fuga
e um leito fala de um corpo
de braços abertos
de ângulos retos.
 
O amor é uma oposição de ângulos
uma razão de semelhança
e o mundo é apenas um rosto
um rosto em fuga.
 
A geometria é a matéria do mundo.
 
Ana Hatherly,  em A idade da escrita, 1998.
 


19/11/2012

 
 
Desenho de Ana Hatherly

O poema é solitário
 
Paul Célan
 
O pequeno gesto de um poema
pode abrir uma perspectiva infinita?
 
Quantas vezes será preciso
bater com a cabeça
para vislumbrar a graça original?
 
Tudo o que podemos não podemos
Tudo o que fazemos não o fazemos sós
 
A palavra é um duro muro:
não se move a suplicantes rogos
 
O poema isola o poeta
afirma-se à margem de si próprio
 
 
***
 
Os poemas são uma peregrinação
uma crença
que impele o poeta ao corpo a corpo
com o abismo que o cerca
 
A batalha é infinita
assenta no interesse do acaso
do ocaso
dos infinitos mortos
em cujos ombros subimos
incansáveis
 
Qual é o prazer do caminhante
senão
o de encontrar a invisível ponte
a ambição de ousar?
 
A nostalgia é um erro da paixão
O poema é um rio de vozes (grifo meu)
 
 
Ana Hatherly, Porto (1929-   ), em O pavão negro, 2003.

16/11/2012

O ofício do poeta

Paul Cézanne
 
"Poeta" pertence àquela categoria de palavras que, durante um certo tempo, caíram enfermas, em desamparada exaustão: eram evitadas e dissimuladas - seu uso expunha-nos ao ridículo - e foram tão exauridas que, enrugadas e feias, transformaram-se em sinal de perigo. Aquele que, não obstante, se punha a exercer a atividade - que, como sempre, prosseguiu existindo - chamavam a si próprio "alguém que escreve".
Ter-se-ia podido pensar, então, que se tratava de renunciar a uma falsa pretensão, de descobrir novos critérios, de se tornar mais rigoroso consigo e, particularmente, de evitar tudo o que pudesse levar a êxitos indignos. Na realidade, aconteceu o contrário: os métodos para causar sensação foram conscientemente desenvolvidos e intensificados justamente por aqueles que, aos golpes, rechaçavam sem piedade a palavra "poeta" [....] Outros, porém, que não eram suficientemente estéreis para se esgotarem em uma proclamação, que  conceberam livros amargos e talentosos, muito em breve passaram a gozar de grande prestígio e, como  "alguém que escreve", faziam justamente aquilo que antes os poetas costumavam fazer: em vez de se calarem, continuavam escrevendo sempre o mesmo  livro. [.............].
O que ocorre, na realidade, é que ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo. Quem não vê o estado do mundo em que vivemos dificilmente terá algo a dizer sobre ele. O perigo de que é alvo, antes preocupação central das religiões, deslocou-se para o aquém. O ocaso do mundo, experimentado mais de uma vez, é visto com frieza por aqueles que não são poetas; alguns há que calculam suas chances de fazer disso o seu negócio e engordar cada vez mais com ele..[...........................................].
Talvez valha o esforço refletir se nesta situação do mundo existe algo por meio do qual os poetas, ou aquilo que até o momento se considera como tal. possam fazer-se úteis. De qualquer modo, apesar de todos os reveses que a palavra "poeta" sofreu, algo restou de sua pretensão. A literatura pode ser o que for, mas uma coisa não é - assim como não o é a humanidade que a ela ainda se agarra: a literatura não é algo morto. No que consisitiria então a vida daquele que hoje a representa? O que teria para oferecer?
 
Elias Canetti,  trechos do discurso proferido em Munique, em 1976. É autor de vários livros, entre os quais Auto de fé, A língua absolvida, Uma luz no meu ouvido, O jogo dos olhos.(trilogia autobiográfica) Em 1981 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Nasceu na Bulgária, mas aos 6 anos foi com a família para a Inglaterra, mudando-se mais tarde para Viena. A partir de 1938 passou a viver entre Londres e Zurique para fugir do nazismo. (1905-1994)
 


14/11/2012

Quando elas despertam


 
procura guardá-las, Poeta
por poucas que sejam de guardar
do teu amar as visões.
Coloca-as no meio, ocultas
nas tuas frases.
Procura detê-las, Poeta,
quando em tua cabeça elas despertam,
de noite ou na luz crua do meio-dia.
 
 
Kontantinos Kaváfis,  Alexandria, Egito - 1863-1933


12/11/2012


O Pensador, de Rodin (há 117 anos!)


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
  E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido  a cada momento
Para a eterna novidade do mundo.
 
Fernando Pessoa

10/11/2012

No trem, pelo deserto



 
As vozes frias
Anulam toda a chance de existência.
Jogam cartas terríveis
Batem fotografias perigosas
Não temem. Falam. Passam,
Na chacina do raro ostentam sua miséria.
 
Ninguém veste de verde. Um só
Parece vivo, aberto - e esse dorme.
As aves lentas voam seus presságios
E a brisa morna engendra flores duras
Na secura dos cactos.
 
Alguém pergunta: "Estamos perto?" E estamos longe
E nem rastro de chuva. E nada pode
Salvar a tarde.
 
(Só se um milagre, um touro
Surgisse dentre os trilhos para enfrentar a fera
Se algo fértil enorme aqui brotasse
Se liberto quem dorme se acordasse).
 
 
Mário Faustino, em O homem e sua hora E outros poemas. - Teresina(PI), 1930-1962

05/11/2012

O Tigre


 
 
Tigre! Tigre! chama pura
Nas florestas, noite escura,
Que olho ou mão imortal cria
A tua terrível simetria?
De que abismo ou céu distante
Vem tal fogo coruscante?
Que asas ousa nesse jogo?
E que mão se atreve ao fogo?
Que ombro e arte te armarão
Fibra a fibra o coração?
E ao bater ele no que és,
Que mão terrível? Que pés?
E que martelo? que torno?
E o teu cérebro, em que forno?
Que bigorna? Que tenaz?
Pro terror mortal te traz?
 
Quando os astros lançam dardo
E seu choro os céus põem pardo
Vendo a obra ele sorrí?
Fez o anho e fez a ti?
Tigre, tigre, chama pura
Nas florestas, noite escura,
Que olho ou mão imortal cria
A tua terrível simetria?
 
 
William Blake,  Londres (1757-1827)

02/11/2012

O sermão do diabo (reeditado)



 
NEM SEMPRE RESPONDO POR PAPÉIS VELHOS; mas aqui está um que parece autêntico;e, se não o é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de S.Mateus.
 Não se apavorem as almas católicas.Já Santo Agostinho dizia que "a igreja do Diabo imita a igreja de Deus". Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo:
1. E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.
2. E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras sequintes
3. Bem-aventurados aqueles que embaçam porque eles não serão embaçados.
4. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
5. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.
6. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
7. Bem-aventurados sois,quando vos injuriarem e disserem todo o mal por meu respeito.
8. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
9. Vós sois o sal do money market.E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar?
10. Vós sois a luz do mundo.Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela. [.................]
14. Também foi dito aos homens:
Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados.Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra;basta arrancar-lhe a última camisa. [..........]
20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.
21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo.


Machado de Assis.