DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/12/2012

O mundo que vencí deu-me um amor

 
O mundo que vencí deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que vencí deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que vencí deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
 
 
MÁRIO FAUSTINO,  Teresina (PI) - 1930-1962

23/12/2012

O último voo do poeta Lêdo Ivo







 
Planta de Maceió
 
 
O vento do mar rói as casas e os homens.
Do nascimento à morte,
 os que moram aqui andam sempre cobertos
 por leve mortalha de mormaço e salsugem.
 Os dentes do mar mordem, dia e noite,
 os que não procuram esconder-se no ventre dos navios
e se deixam sugar por um sol de areia.
Penetrada nas pedras,
 a maresia cresta o pêlo dos ratos perdulários que,
 nos esgotos, ouvem o vômito escuro do oceano esvaído em bolsões de mangue
e sonham os celeiros dos porões dos cargueiros
. Foi aqui que nasci,
 onde a luz do farol cega a noite dos homens e desbota as corujas.
A ventania lambe as dragas podres,
entra pelas persianas das casas sufocadas e escalavra as dunas mortuárias
onde os beiços dos mortos bebem o mar.
Mesmo os que se amam nesta terra de ódios
são sempre separados pela brisa que semeia a insônia nas lacraias
e adultera a fretagem dos navios.
Este é o meu lugar,
 entranhado em meu sangue como a lama no fundo da noite lacustre
. E por mais que me afaste,
 estarei sempre aqui e serei este vento
 e a luz do farol, e minha morte vive na cioba encurralada.
 


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A queimada

 
Queime tudo o que puder :
  as cartas de amor as contas telefônicas
o rol de roupas sujas as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos :
 more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.



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O voo dos pássaros
 
Os áridos pássaros que mudam as estações
não vieram nunca, embora eu os esperasse.
Acaso falam os homens do que viram?
Silenciosos são os lábios dos homens.
Grito ou palavra de amor não comovem
as pedras empedernidas pelo tempo.
Eram secos pássaros.
E o céu, que é plumagem, crepita.
Nem nos que voam nem nos que permanecem.
Não me demorei sobre nenhum pássaro.
Voando, eram a velha canção da infância morta
para mim, que sempre vi o que não existe
e eternamente verei o que jamais existirá.
Em voo, como os anos, a vida, o tempo...
Nada imaginei que pudesse ser admitido
pelos que não entendem uma teoria de pássaros.

 
LÊDO IVO,  poeta, romancista, cronista, ensaísta e tradutor, nasceu em Maceió(AL), em fevereiro
de 1924, e faleceu em Madri (Espanha), na madrugada de 23-12-2012 aos 88 anos de idade.


15/12/2012


 
 
O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei advinho e, com sorte, você advinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba contecendo.
 
 
DALTON TREVISAN,  em  Novelas nada exemplares.

12/12/2012

A sombra que deseja e escreve


 
 
Sou a sombra que deseja e sou a sombra que te escreve
entre a saliva suave e o metal da alegria.
Giram as laranjas de fogo, as gargantas as ondas.
O teu corpo é um arbusto violento, um animal vibrante.
Quero ser a espuma dos teus ombros, o canto dos teus músculos.
 
Toco a madeira dos teus flancos límpidos, bebo
as sílabas de um pequeno bosque, ando na sombra
do teu sangue, escrevo os latidos do teu sexo,
 escrevo as últimas lâmpadas do teu corpo,
acaricio sombras e sombras entre espumas.
 
Escrevo agora a sombra mais feliz das veias sossegadas.
Abrem-se as portas delicadas de um jardim.
A substância mais frágil é o silêncio do corpo.
Leio as sílabas lisas do repouso
Estou no centro de uma estrela sou o seu obscuro ardor.
 
 
ANTONIO RAMOS ROSA,  em  Animal olhar - Escrituras, São Paulo, 2005

09/12/2012

Janelas


 
 
Recordações inumeráveis
correm silenciosamente
nas margens do rio
(dos olhos dos homens)
 
e os últimos repuxos
e as últimas flores
secam inexplicavelmente
nos olhos do homem.
 
 
 
A poesia da noite
 
 
Sobre o pano da mesa e nos jarros de um gosto improvável
colocaram flores e gestos de parentes extintos
que um microfone cuidadosamente disfarçado
irradiou toda a noite para muito longe.
 
 
JOÃO CABRAL DE MELO NETO,  Recife(PE) - 1920-1999.

06/12/2012

Dois poemas de Oscar Niemeyer - 1907-2012

 
 
 
 
 
"Sentia-me longe de tudo. De minha família, dos amigos, das montanhas, mares e praias do meu país. Precisava voltar. Certo dia, não sei porquê, esse afastamento me pareceu mais doloroso. E escrevi estes versos, que preguei na parede do nosso escritório:"
 
Estou longe de tudo
de tudo que gosto, dessa terra tão linda que me viu nascer
. Um dia eu me queimo, meto o pé na estrada,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
Cada um no seu canto, cada um no seu teto,
a brincar com os amigos, vendo o tempo correr.
Quero olhar as estrelas, quero sentir a vida,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
Estou puto da vida, esta gripe não passa,
de ouvir tanta besteira não me posso conter.
Um dia me queimo, e largo isto tudo,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
Isto aqui não me serve, não me serve de nada,
a decisão está tomada, ninguém me vai deter
Que se foda o trabalho, e este mundo de merda,
é aí, no Brasil, que eu quero viver.
 
 
*****

 
 

Não é o ângulo reto que me atrai
nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual,
a curva que encontro nas montanhas do meu país,
no curso sinuoso dos seus rios,
nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
o universo curvo de Einstein.

05/12/2012

A beleza





NUMA CERTA cidade o arco-íris apareceu e nunca mais se foi embora. Durante um ano permaneceu no mesmo sítio do céu. Tornou-se aborrecido.
Um dia, finalmente, o arco-íris desapareceu e o céu ficou cinzento escuro por completo. As crianças dessa cidade, excitadas, apontavam para o céu cinzento e gritavam uns para os outros: olha, que bonito!
 
 
 
Liberdade de escolha
 
 
ERA UMA  livraria que vendia um único livro. Havia cem mil exemplares numerados do mesmo livro. Como em qualquer outra livraria os compradores demoravam-se, hesitando no número a escolher.
 
 
 
Gonçalo M. Tavares,  (Angola, 1970-   ), em O Senhor Brecht - Casa da Palavra.

02/12/2012

Leitura das pálpebras


 
 
Quem lê no rosto dos
homens, não lê os homens:
mas os sonhos. O que
parece imaculado, se intumesce,
cavando olhos, óculos, bando
de andorinhas sobre os cílios.
Quem lê  no rosto, não vê
o que anda resvalando
dentre os penhascos do ser
e a sua alma chegando.
E o mundo não sabe ler
os homens, , não sabe nem
por onde vão os sonhos,
por onde os seus sonhos ve(e)m.
 
 
Carlos Nejar, em Fúria Azul - Antielegias, - Ateliê Editorial