DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/07/2009

EUCANÃA FERRAZ - A Leitora





Alí está ela, atenta.

Mas, repara: lê como se levitasse.

O escrito pouco importa.

É como se não lesse. Imagine:

uma língua tão estrangeira

que ela não recohecesse, não soubesse

qual e, serena, não dá por isso.

Ou mais que: não lê.

Vê as páginas, como se da janela

a paisagem e pousasse os olhos

na orla das páginas

sem saber onde vão as palavras.

Frui, tão-só, a pele, o almíscar,

a árvore que o livro foi um dia.
Eucanaã Ferraz, Rio de Janeiro (1961- )

25/07/2009

"Viagem aos Seios de Duília"


Foi andando para o passado...Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trás - tinha então, 16 anos - ressurgiu-lhe a cidadezinha onde
encontrara Duília. Aí parou. E Duília lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito com que uma moça pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio
do sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
{.}
Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colunas
da outra margem lhe recordavam a presença corporal da moça. Às vezes chegava a dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas comprazia-se
na evocação.
{.}
O que mais o espantara no gesto de Duília - recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro - foi a gratuidade inexplicável e a absurda pureza.
Ela era moça recatada, ele um rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal
se conheciam. A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse - Quer ver? - Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete - Quer ver mais? - E mostra-lhe o outro seio, branco, branco. E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...
Só isso. Durou alguns segundos, está durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do alumbramento, avistara Duília. A moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento.


Aníbal Machado, Sabará-MG (1894-1964)

16/07/2009

"A Semente"






Pelo caminho estreito que procuro,

fogem, grasnando, patos assustados.

Entre o caminho e as quintas há um muro

simpático - caiado dos dois lados.

Sempre que vê passar bocas famintas,

segreda para dentro resoluto;

e logo qualquer árvore das quintas

deita um braço de fora e estende um fruto.

Um dia, o vento trouxe uma semente;

a terra que no muro dormitava,

lembrou-se que era terra...e, de repente

brotou do muro uma figueira brava !




Leonel Neves, poeta português, nascido em Faro (1921-1996)

10/07/2009

100 Anos de Mestre Vitalino

"Rendeira"
"pau-de-arara"

Forno de Mestre Vitalino


Museu Vitalino (Caruaru)



"Banda de Pífanos


"O soldado com o bêbado"

Vitalino Pereira dos Santos, nasceu no dia 10 de julho de 1909 no sítio Ribeira dos Campos, distrito de Caruaru (PE). Filho de um lavrador e de uma ceramista de panelas de barro, começou o seu ofício observando o trabalho da mãe e, aproveitando as sobras de barro que ela deixava, foi criando pequenos animais, como cachorros, burrinhos, lagartos, etc. Quando sua mãe ía a Caruaru vender suas panelas, levava suas peças para também vendê-las. Aos poucos seu trabalho foi se tornando conhecido em toda a feira e Caruaru foi adquirindo fama como o grande centro de cerâmica do Nordeste. Seus trabalhos foram posteriormente expostos no Rio de Janeiro, e atualmente tem reconhecimento internacional. Era um artista de muito talento, desprovido de vaidade, a ponto de não importar-se que outros ceramistas copiassem o seu trabalho.Para ele o importante era que fosse mostrada a arte popular nordestina. Além de ceramista, mestre Vitalino era também um tocador de Pífanos, tipo flauta rústica muito tocada nas feiras nordestinas. Faleceu em 1963, deixando uma obra de mais de 100 peças, de vários tamanhos, feitas de barro massapê, extraído do rio Ipojuca.

09/07/2009

Poema das Sete Faces

"Nu no Cabide" - Ismael Nery
Quando nascí um anjo torto,
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida
As casas espiam os homens,
que correm atrás de mulheres
À tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos
O bonde passa cheio de pernas,
pernas brancas, pretas, amarelas
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração
Porém meus olhos
não perguntam nada
O homem atrás dos óculos
é sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco
Mundo, mundo, vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução
Mundo, mundo, vasto mundo,
mais vasto é o meu coração
Eu não devia te dizer, mas essa lua,
mas esse conhaque botam a gente
comovido como o diabo !
Carlos Drummond de Andrade

07/07/2009

Fiz a Cama na Varanda


Fiz a cama na varanda,

me esquecí do cobertor

deu um vento na roseira

(ah! meus cuidados!)

me cobriu todo de flor...

Menino, meu menino

não faça assim como eu

que vivo morta de pena

porque ninguém me escolheu...

Fiz a cama na varanda,

me deitei pensando em ti

deu um vento na roseira

e eu do sono me esquecí...!



Dilu Melo, cantora, compositora, nascida em Viana(RJ) Maria de Lurdes Argollo Oliver, em 1913. Faleceu em 2000 no Rio de Janeiro

05/07/2009

Os sapos


Enfunando os papos,
saem da penumbra,
aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi " - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
parnasiano aguado,
Diz: "Meu cancioneiro
é bem martelado.
Vêde como primo
em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
os termos cognatos.
O meu verso é bom
frumento sem joio.
Faço rimas com
consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
a forma e a forma.
Clame a saparia
em críticas:
Não há mais poesia,
mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei" "Foi !"
- "Não foi !" - "Foi!" "Não foi!"
Brada em um assomo
o sapo-tanoeiro:
- "A grande arte é como
lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
tudo quanto é vário,
canta no martelo."
Outros sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
falam pelas tripas:
- "Sei!" - "Não sabe!" - Sei!"
Longe dessa grita,
lá onde mais densa
a noite infinita
verte a sombra imensa;
lá, fugido ao mundo,
sem glória, sem fé,
no perau profundo
e solitário, é
que soluças tu,
tremendo de frio,
sapo cururu
da beira do rio...
Manuel Bandeira, poeta pernambucano de Recife (1886-1968)