Por um pé de feijão
Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (a nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulhos e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do por-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.
Até me esquecí da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.
Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?
No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ía ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ía perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corrí até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ía se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo alí, bem no comecinho da cerca, que eu ví a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?
E vi os meninos conversarem só comos pensamentos e só o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E ví a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.
À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como pintos molhados. A voz de minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.
Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.
- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.
Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão
Antonio Torres, jornalista e escritor, nascido no povoado Junco (sertão da Bahia), atualmente cidade de Sátiro Dias, em 1940. Autor de vários romances, destacando-se Essa Terra, Um cão uivando para a lua, Os homens dos pés redondos, Sobre pessoas(crônicas), Meu querido canibal, O cachorro e o lobo, Balada da infância perdida. Seus livros já foram traduzidos para o italiano, inglês, francês, alemão, búlgaro, entre outros. Ganhador de vários prêmios, entre eles o Prêmio Machado de Assis(ABL), Chevalier des Arts et des Lettres(governo francês), União Brasileira de Escritores, etc.
Oh, Cirandeira, que maravilhosa postagem!
ResponderExcluirNão será que é em dramas assim, aparentemente circunscritos, que se resume o grande drama humano?
Beijo :)
Pode até ser, AC, pelo menos UM dos grandes dramas humanos. Se todos conseguíssemos alcançar essa sabedoria, não é?
ResponderExcluirbeijos :)
Lindo conto. Essa história me cortou o coração. Por incrível que pareça, me trouxe muitas lembranças. Bj.
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