DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/07/2013

Alguns gostam de poesia

 
 

ALGUNS gostam de poesia.   Alguns — quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.
Gostam — mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
 gosta-se de fazer festas a um cão.
De poesia — mas o que é a poesia?
 Algumas respostas vagas já foram dadas,
mas eu não sei e não sei,
 e a isto me agarro como a um corrimão providencial.


Wislawa Szimborska

Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves.

25/07/2013

 
Les chiens nus - Cécile Hesse
 
Uma dor desencontrada esconde-se para sobreviver à loucura, ao inominável. Uma dor sem palavras, caída sobre o papel tenta voar, mas suas asas estão cortadas, sua língua bifurcou-se nos despenhadeiros abissais do silêncio por obsolescência e desuso.  


16/07/2013

Temporal


 
 
Chegas sempre com as marés do final
da tarde. Uma canoa solta nas águas salgadas.
Primeiro são os olhos que se recusam ancorar
em ti, mas depois os dedos remam devagar
sobre a água tépida que a tua pele transpira.
Uma onda, duas, e o mar inteiro desequilibra
o meu navio.
 
 
Acende-se ao longe um farol. Mas não
queremos um cais sereno, uma margem tranquila
aonde chegar. O facho semeia promessas
sobre as vagas, promete a fuga à tormenta
que nos abala, que nos lança um contra o outro.
Mas não! Que se apague o farol. Que desapareça
o facho na escuridão letal.
 
 
São minhas as algas que te amarram o sossego,
que te prendem a respiração. Mas são nossas as velas
que se rasgam do mesmo vendaval.
 
 
Jorge Arrimar, Planalto da Huíla, Angola.

12/07/2013

De João Cabral para Graciliano Ramos




Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

* * *

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se na fraude.


* * *

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:


e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.


* * *

Falo somente para quem falo:
 quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

João Cabral de Melo Neto, Serial, 1961.

10/07/2013

O olho esquerdo




a fronteira
entre a noite e o dia
é um galo
que alguém aqui perto
exilou num quintal.
 
 
Marçal Aquino, Amparo (SP)

08/07/2013

Ebriaguem-se!

 
 

Embriaguem-se   É preciso estar sempre embriagado.  Aí está: eis a única questão.  Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra,  é preciso que se embriaguem sem descanso. Com quê?  Com vinho,  poesia  ou  virtude,  a  escolher.  Mas embriaguem-se. E  se, porventura,  nos degraus de um palácio,  sobre a relva verde de um fosso,  na solidão morna do quarto,  a embriaguez diminuir  ou desaparecer quando  você  acordar,  pergunte  ao  vento,  à  vaga, à  estrela,  ao pássaro,  ao relógio,  a tudo que flui,  a tudo que geme,  a tudo que gira,  a tudo que canta,  a tudo que fala,  pergunte que horas são;  e o vento,  a vaga,  a estrela,  o pássaro,  o relógio responderão:  "É hora de embriagar-se!  Para não serem os escravos martirizados do Tempo,  embriaguem-se;  embriaguem-se sem descanso".  Com vinho,  poesia ou virtude,  a escolher.


Charles Baudelaire

06/07/2013

Uma crônica de Rubem Braga


 
 
O conde e o passarinho


Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho). Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens - o Conde e o passarinho - foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo. Devo confessar preliminarmente que entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho. Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu. Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte. Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa. Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder. Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem? Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha. O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham

04/07/2013

A covardia europeiaa contra o presidente Evo Morales



   Os europeus, os campeões da defesa da democracia, do Estado de Direito e da liberdade, demonstraram que suas relações com a Casa Branca estão acima de tudo e que podem pisotear os direitos de um avião presidencial caso isso seja preciso para que o grande império não se incomode com eles. Um rumor infundado sobre a presença no avião presidencial boliviano do ex-espião estadunidense Edward Snowden, conduziu a um sério incidente diplomático aeronáutico entre Bolívia, França, Portugal e Espanha

  Os europeus são incorrigíveis. Para não ficar mal com o império norte-americano são capazes de violar todos os princípios que defendem nos fóruns internacionais. O presidente boliviano Evo Morales foi o último a experimentar as consequências dessa política de palavras solidárias e gestos mesquinhos. Um rumor infundado sobre a presença no avião presidencial boliviano do ex-membro da Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana, o estadunidense Edward Snowden, conduziu a um sério incidente diplomático aeronáutico entre Bolívia, França, Portugal e Espanha. Voltando de Moscou, onde havia participado da segunda cúpula de países exportadores de gás, realizada na capital russa, Morales se viu forçado a aterrissar no aeroporto de Viena depois que FrançaPortugalEspanha negaram permissão para que seu avião fizesse uma escala técnica ou sobrevoasse seus espaços aéreos. Os “amigos” do governo norte-americano avisaram os europeus que Morales trazia no avião Edward Snowden, o o homem que revelou como Washington, por meio de vários sistemas sofisticados e ilegais, espionava as conversações telefônicas e as mensagens de internet da maioria do planeta,  inclusive da ONU e da União Europeia. O certo é que Edward Snowden não estava no avião de Evo Morales. No entanto, ante a negativa dos países citados em autorizar o sobrevoo do avião presidencial, Morales fez uma escala forçada na Áustria. As capitais europeias coordenaram muito bem suas ações conjuntas para cortar a rota de Evo Morales. Surpreende a eficácia e a rapidez com que atuaram, tão diferente das demoradas medidas que tomam quando se trata de perseguir mafiosos, traficantes de ouro, financistas corruptos ou ladrões do sistema financeiro internacional. Segundo a informação da chancelaria boliviana, o avião havia obtido a permissão da Espanha para fazer uma escala técnica nas Ilhas Canárias. Essa autorização também foi cancelada e, finalmente, o avião teve que aterrissar no aeroporto de Viena. Segundo declarou em La Paz o chanceler boliviano David Choquehuanca, “colocou-se em risco a vida do presidente que estava em pleno voo”. “Quando faltava menos de uma hora para o avião ingressar no território francês nos comunicam que tinha sido cancelada a autorização de sobrevoo”. O ministro pediu uma explicação tanto da França quanto de Portugal, país que tomou a mesma decisão que a França. “Queriam nos amedrontar. É uma discriminação contra o presidente”, disse Choquehuanca. Em complemento a esta informação, o portal de Wikileaks também acusou a Itália de não permitir a aterrisagem do avião presidencial boliviano. Em Paris, o conselheiro permanente dos serviços do primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault disse que não tinha nenhuma informação sobre esse assunto. Por sua vez, a chancelaria francesa disse que não estava em condições de comentar o caso. Bocas fechadas, mas atos concretos. Ao que parece, todo esse enredo se armou em torno da presença de Snowden no aeroporto de Moscou. Alguém fez circular a informação de que Snowden estava no aeroporto da capital russa com a intenção de subir no avião de um dos países latino-americanos dispostos a lhe oferecer asilo político. Snowden é procurado por Washington depois de revelar a maneira pela qual o império filtrava as conversações no mundo. O chanceler boliviano qualificou como uma “injustiça” baseada em “suspeitas infundadas sobre o manejo de informação mal intencionada” o cancelamento das permissões de voo para o avião de Evo Morales. “Não sabemos quem inventou essa soberana mentira; querem prejudicar nosso país”, disse Choquehuanca. “Não podemos mentir à comunidade internacional e não podemos levar passageiros fantasmas”, advertiu o responsável pela diplomacia boliviana. Em La Paz, as autoridades adiantaram que não receberam nenhum pedido de asilo por parte de Edward Snowden. Evo Morales havia evocado a possibilidade de conceder asilo a Snowden, mas só isso. O mesmo ocorreu com outra vítima da informação e da perseguição norteamericana, o fundador do Wikileaks, Julian Assange. O mundo ficou pequeno para Edward Snowden. Assange está refugiado na embaixada do Equador em Londres e Snowden encontra-se há dez dias na zona de trânsito do aeroporto de Sheremétievo, em Moscou. Segundo Dmitri Peskov, o secretário de imprensa do presidente Vladimir Putin, o norteamericano havia solicitado asilo a Rússia, mas depois “renunciou a suas intenções e a sua solicitação”. Peskov esclareceu, porém, que o governo russo não entregaria o fugitivo para a administração norte-americana: “o próprio Snowden por sincera convicção ou qualquer outra causa se considera um defensor dos direitos humanos, um lutador pelos ideais da democracia e da liberdade pessoal. Isso é reconhecido pelos ativistas e organizações de direitos humanos da Rússia e também por seus colegas de outros países. Por isso é impossível a entrega de Snowden por parte de quem quer que seja a um país como os EUA, onde se aplica a pena de morte. Quando se referiu ao caso de Snowden em Moscou, Evo Morales assinalou que “o império estadunidense conspira contra nós de forma permanente e quando alguém desmascara os espiões, devemos nos organizar e nos preparar melhor para rechaçar qualquer agressão política, militar ou cultural”. Os europeus, os campeões da defesa da democracia, do Estado de Direito e da liberdade, demonstraram que suas relações com a Casa Branca estão acima de tudo e que podem pisotear os direitos de um avião presidencial caso isso seja preciso para que o grande império não se incomode com eles.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer em  www.cartamaior.com.br

02/07/2013

" A Velha " e " A Rendeira" (reedição)




A Rendeira
 
Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela
Ponto a ponto, paciente, tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
 
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento
enquanto, estrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
 
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?

 
A Velha
 
Esculpida em silêncio
sentada e sábia,
fita o horizonte da mágoa.
 
Ao seu lado,
o mar murmura
as sílabas do ocaso.
 
Ó beleza antiga e súbita:
sobre o seu ombro
o instante se debruça
iluminado.


Dois poemas de Adriano Espínola, poeta nascido em Fortaleza (CE) em 1952. É professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Ceará. Possui vários livros publicados, entre eles. "Beira-Sol" e "Artes de Enganar: Um estudo das máscaras poéticas e biográficas de..."