DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/01/2014

Um "passeio" com Enrique Vila-Matas


 

Faz pouco tempo que encontrei-me com ele,  há um ano, ou talvez dois. Estava sozinho meio escondido numa daquelas imensas prateleiras da livraria, e o título chamou-me a atenção: "História abreviada da literatura portátil", um livro pequeno e fácil de carregar como sugere o título, com uma proposta inusitada - um conjunto de autores seletos teria se reunido para formar a "sociedade portátil", cujo objetivo seria a portabilidade de sua obras. Desde então, tenho "passeado" com esse espanhol de Barcelona, que de forma criativa, inteligente e divertida tem me pegado pela mão, me feito caminhar sem medo, sem preconceitos pelos "Suicídios exemplares", pela angústia criativa de "Bartleby e companhia", pelos "Exploradores de abismos", cujos personagens mergulham em si mesmos, exploram o vazio e desaparecem no abismo da vida cotidiana.
Em "A glória solitária", um dos contos desse volume, o narrador comenta:
 
   No fim das contas, aí está essa suspeita de que não somos autores de nada se não estamos ausentes, escondidos ou mortos.
O gênio pessoal que há em cada criança se esconde pelo prazer do próprio ato de ocultar-se, do mesmo modo que o autor de uma verdadeira obra literária escreve essa obra pelo puro prazer de escrevê-la, e todo o resto - o reconhecimento, as medalhas, as aclamações do público, etc - lhe parece imensamente superficial, acessório e acima de tudo contrário a seus interesses de liberdade do seu duende pessoal.
 
***
 
Talvez ser um autor seja fazer-se de morto, situar-se no lugar do defunto, e não perder de vista certas perspectivas abertas por pensadores como Foucault, para quem o que a escrita põe em questão não é tanto a expressão de um sujeito que escreve quanto a abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não cessa de desaparecer: "A marca do autor está somente na singularidade de sua ausência; ao escritor é destinado o papel de morto no jogo da escrita".
 
 
Atravessar abismos, conseguir mergulhar neles é tarefa das mais difíceis. Existem os que nos tornam criativos e os que nos paralisam. Enrique Vila-Matas
nos mostra com maestria sua capacidade para explorá-los!


23/01/2014

Escritor versus Ficção

Alberto Burri
 
 
[...] não há necessariamente uma ligação entre o mundo tão interessante que o escritor cria na mente do leitor e os fatos da vida do escritor, até porque escrever é uma profissão sedentária de classe média, que consome tempo demais para deixar oportunidades de sobra para se ter uma vida interessante. Alguns autores, como Joseph Conrad, tiveram vidas interessantes em sua juventude, e depois disso se aquietaram e escreveram sobre o que tinham vivido, mas a maioria de nós, como ostras, precisa apenas de minúsculas irritações para levar adiante sua existência.
Há também escritores para quem escrever é um feitiço contra a intolerável realidade, e,  para esses, as diferenças entre os fatos vividos e as histórias imaginadas são muito maiores exatamente quando ambas são quase idênticas.
[...] "Nunca queremos que os fatos entrem em choque com a verdade", declarou o romancista Roberto Stone, cuja juventude foi quase tão aventureira quanto a de Conrad e um bocado mais desregrada. "É por isso que a ficção dá mais satisfação do que a não-ficção". Ou seja, mentir faz parte do ofício criativo dos escritores: eles pegam o que sabem, distorcem como lhes convém, depois culpam a imaginação como resultado. Mas a única área em que o autêntico escritor nunca mente é na própria arte de escrever, o trabalho árduo, doloroso e implacável de por as palavras no papel com precisão e contenção. É um ofício, como o de carpinteiro ou de pedreiro, que tem muito pouco a ver com a personalidade pública do escritor ou mesmo com a sua imagem particular que ele tem de si mesmo.
 
A. Alvarez (Alfred), em A voz do escritor - Editora Civilização Brasileira. É poeta, romancista e crítico literário. Nasceu em Londres, 1929. É autor de "O deus selvagem", entre outros
 
 


22/01/2014

Você gosta mesmo de poesia?

 



Entre  a  agonia  da  página  em  branco  ou  da  tela  do  computador,  é  sempre  bom  lembrar:  “há uma  gota  de  sangue  em  cada  poema”,  como  dizia  Mário de Andrade.  Essa  gota  de  sangue,  na condição  de  metáfora,  significa   a  urgência  de  não  separar  a  arte  da  existência,  o poema da vida  e  da  convivência.  Isso  que  não  se  aprende  nos  dicionários  nem  se  apreende  das gramáticas,  retóricas  e  poéticas. Nosso  desamparo  fundamental.  Nossa  perplexidade  diante  e  dentro  da “máquina do mundo”. Agonia  em  saber  que  gosto  se  discute.  E  que  fazer   poesia é  talvez  a  mais  fácil  das  artes.  Agonia  de  suportar  e  transcender  nossas  ingenuidades,  teimosias,  vaidades  e  até  mesmo  desinformações. Agonia  para  enfrentar  a  necessidade  de  LER  poemas:  ler  interpretando,  ler  discutindo  e  sobretudo  reler nossos  poetas  fundamentais.  Isto não é fácil.
  Como  escrever  poesia,  poemas  (e até mesmo “atentados poéticos”),  ignorando  inocentemente  as obras  (in)completas  de  Bandeira,  Cardozo,  Drummond,  Cabral,  Jorge de Lima,  Murilo Mendes, Mário  e  Oswald  de  Andrade,  Sousândrade,  Gregório de Matos  e  Guerra...? E  os  nossos contemporâneos?
Essa  agonia  –  rima  pobre  e  rica  com  poesia  –  é  nossa  guerra  particularíssima  contra  a hipocrisia  de  nossa  preguiça  mental,  pedante,  provinciana,  tão  eterna  quanto  efêmera.  Que seja nosso  desafio . Desejar  saber  que  POESIA  (em  maiúscula  ou  não) é  um  trabalho  permanente com  a  linguagem;  que  as  palavras  são  palavrAÇÕES;  que  as  inspirações  são  válidas  quando passam  pelo  crivo  das  transpirações  e  transfigurações  estéticas;  que  o  aparentemente  fácil  pode  ser  o  mais  difícil,  sem  temer  as  incompreensões  e  até  a  má  vontade  dos  leitores;  que “lutar  com  palavras  é  a  luta  mais  vã” (Drummond),  sem  temer  a  urgente  necessidade  da metacrítica,  da  metalinguagem  e  das  potencialidades  da  alegria  conjugando-se  com  a  agonia de  sempre.


Jomard Muniz de Brito, Recife, 1937 - Poeta, escritor, cineasta, é autor de Inventário de um feudalismo cultural - Terceira aquarela do Brasil - Arrecife do desejo, entre outros.. 

18/01/2014

Juan Gelman: a despedida de um gigante




Chuva hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo nem numa mulher
 nem na alma quer dizer .  nessa caixa ou nave
 ou chuva que chamamos assim como hoje
/ que chove muito e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando e como, mas que pode a alma explicar
por isso o meu vizinho tem tempestades na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol
 porque nascem e morrem na mesma noite
 em que ele amou e deixam cartas no pensamento
 que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas ou como eu
  que escrevo palavras para regressar ao meu vizinho
 que vê a chuva e à chuva ao meu coração desterrado

 
 

  Depois de décadas de poesia e de resistência,  marcadas pela morte do filho nas mãos da ditadura,  o argentino Juan Gelman morreu terça na Cidade do México, onde vivia.
  Juan Gelman deixa uma obra marcada pelo amor,  a dor e a morte.  Lutou contra a ditadura militar responsável pelo assassinato do seu filho e foi forçado ao exílio em 1976.  Nunca deixou de se bater pelos direitos humanos,  contra qualquer forma de poder absoluto. Disse numa entrevista ao diário El País no ano passado,  quando já estava muito doente,  que não desprezava a vida,  mas que também não temia a morte. Tinha 83 anos. “Não creio que chegue aos 100 anos”,  disse ao jornal espanhol. “El País, ainda que queira ver casar os meus netos e ter algum bisneto, acredito que Deus, se existe, deve estar entediadíssimo com a sua eternidade.” Gelman, que segundo a imprensa espanhola morreu tranquilamente, rodeado de familiares, sofria de uma disfunção ligada à medula óssea. Autor de uma vasta obra em que a crítica social e política assume papel de destaque, foi por amor que começou a escrever,  dedicando os seus primeiros poemas às paixões de juventude em Buenos Aires, onde nasceu. Esqueceu-se desses primeiros versos,  mas não se esqueceu do nome de uma delas – Ana -, conta o El País. Apesar de ter também assinado textos de prosa e até traduções, foi com a poesia, que a mãe sempre duvidou que viesse a servir para o sustentar,  que Gelman se afirmou: El Juego en que andamos, Velorio del solo,  Cólera e Violín y otras cuestiones  estão entre os seus títulos mais populares,  num percurso que lhe valeu vários prémios, como o Cervantes, o mais importante das letras espanholas, o Neruda ou o Rainha Sofia de Poesia Latino-americana.


Extraído de http://www.cartamaior.com.br

Pelos caminhos do mar...

Jericoacoara-CE
 
 
Lençóis Maranhenses-MA / Carlos Thadeu Pacheco
 
 
Ilha de Itaparica-BA / Foto: Rita Santana

 
Canoa Quebrada-CE
 
Canoa Quebrada-CE
 
 
Camocim-CE
 
 
Lagoa do Portinho-PI
 
 
Aracaju-SE /Foto: Rita Santana
 
 
Cabo de Sto Antônio-AL



14/01/2014

O homem e sua sombra




1.
 
Era um homem com sombra de cachorro
que sonhava ter sombra de cavalo, mas
era um homem com sombra de cachorro
e isto o incomodava.
Por isto aprisionou-o num canil
e altas horas da noite enquanto a sombra
lhe ladrava, sua alma em pelo galopava.
 
 
2.
 
 
Era um homem que pensava tão claro
que nenhuma dúvida o sombreava.
Era como se raciocinasse sempre ao meio-dia,
quando o pensamento é um corpo ereto
 que sombra alguma esconderia.
O problema era à noite
quando o escuro mundo o envolvia:
tentava pensar claro, mas algo o incomodava.
Até que descobriu que a claridade só ganhava
sentido quando com a escuridão dialogava.
 
 
3.
 
 
Era um homem que tinha uma sombra branca
que de tão branca ninguém a via. Mesmo assim
ele a seguia e com ela dialogava.
Tinha-se a impressão que uma coisa ausente
lhe fazia companhia.
 
Na verdade ele era a sombra
de sua sombra - a parte da sombra
que se via.
 
 
Affonso Romano de Sant'Anna

11/01/2014

O coração das trevas

 
Sebastião Salgado
 
 
Quando escreveu O coração das trevas Joseph Conrad (1857-1924) estava com quarenta e cinco anos e já havia viajado por vários continentes  como marinheiro; durante dezesseis anos de sua vida  percorreu a África, Ásia, América e Europa. Seus relatos não são autobiográficos, mas de um observador que conhece profundamente os meandros da alma, aquela feita do barro em que foi moldado o ser humano, um barro extraído das margens lamacentas dos rios, das matas selvagens habitadas por criaturas primitivas, indefesas e vulneráveis aos ataques do homem branco inescrupuloso e ávido por dinheiro. Francis Ford Coppola adaptou o romance sob o título de "Apocalipse Now".
Conrad era polonês, de Berdichev e ainda criança teve que acompanhar os pais em fuga por causa de perseguição política. No meio do caminho perdeu a mãe, que contraiu tuberculose, poucos anos depois, aos seis anos perdeu o pai, passando a viver sob os cuidados de familiares. Peregrinações pra la e pra cá fizeram com que fosse viver na Inglaterra onde aprendeu inglês tão perfeitamente que escreveu toda a sua obra nesse idioma. São dele também Lorde Jim, Tufão, O agente secreto, Nostromo,  entre outros.
Transcrevo aqui alguns trechos do livro:
 
 
[...] O lugar parecia extraterreno. Estávamos habituados a vê-lo sob a forma de um monstro agrilhoado e domado, mas ali - o que víamos ali era uma coisa monstruosa e livre. Era algo extraterreno, e os homens eram...não, não eram inumanos. Bem, vocês sabem, não há nada pior do que a suspeita de que não eram inumanos. E essa desconfiança pouco a pouco se apoderava de nós. Uivavam, saltavam, rodopiavam e faziam caretas horrendas; mas o que mais impressionava era a ideia de que eram criaturas humanas...como nós, a ideia de que havia um remoto parentesco entre nós e aquele selvagem e apaixonado furor. (...) A mente humana é capaz  de qualquer coisa - porque tudo está nela, todo o  passado bem como todo o  futuro.
 
 
[...] Sim, eu olhava para eles como vocês fariam com relação a qualquer ser humano, com curiosidade sobre seus impulsos, motivos, capacidades, fraquezas, postos à prova diante de uma necessidade física inexorável. Um freio! Que tipo de freio poderia ser esse? Superstição, repugnância, paciência, medo - ou alguma primitiva noção de honra? Nenhum medo pode suportar a fome, nenhuma paciência pode esgotá-la, a repugnância simplesmente não existe onde há fome; e quanto a superstições, crenças e o que poderia chamar de princípios são menos do que  palha soprada pelo vento. Vocês têm ideia do que seja o suplício de uma fome prolongada, conhecem seu exasperante tormento, os negros pensamentos e a terrível ferocidade que ela inspira constantemente? Bem , eu conheço. Um homem necessita de toda a sua força inata para combater a fome de forma apropriada. É realmente mais fácil enfrentar a desgraça, a desonra e a perdição da própria alma - do que a fome permanente.
 
Li esse livro há alguns anos atrás. Relendo-o agora sinto como se fosse a primeira vez. Estou fascinada!!!


07/01/2014

Em auxílio das frases feitas



Existem lugares que ao chegarmos pela primeira vez temos a nítida sensação de já conhecê-los,  o mesmo acontece com determinadas pessoas: é cruzarmos o olhar e já nos conhecíamos desde sempre, não sabemos exatamente o porquê. E existem também  alguns escritores que  nos dão aquela sensação de terem tomado a nossa mão e escrito por nós, de tão familiares, de expressarem o que sentimos e pensamos. Julio Cortázar  é um desses autores com quem me identifico,  pela forma como escreve, como se estivesse conversando com a gente,  seu texto flui com uma naturalidade ao mesmo tempo que nos  mostra com maturidade e bom humor coisas aparentemente banais. Tenho-o sempre por perto, e cada vez que o relei-o é como se fosse a primeira vez, porque há sempre algo de novo que não havia percebido na vez anterior. Assim são os bons escritores, são inesgotáveis!


Dito tudo
não resta
evidentemente
nada a dizer

*

Dito tudo,
mas o quê?
Para saber
seria preciso situar-se
atrás do poema,
no não escrito,
coisa meio difícil.

*

Afinal de tudo
não resta nada.

*

Passando de uma coisa a outra,
outra coisa é brilhantina,
único fabricante Brancato.

*

Pensando bem,
não seria necessário
dizer o que disse antes, não é?

*

Desculpe, mas...
Quase sempre prelúdio
de algo indesculpável.

*

Sinto muito, mas...
Vamos, vamos.

 Papéis Inesperados, publicado em 2009, vinte e cinco anos após a morte de Julio Cortázar, é uma coletânea de textos inéditos e dispersos, escritos pelo autor ao longo de sua vida.

04/01/2014

Sequências



Parou de ler o relato no ponto em que um personagem parava de ler o relato no lugar onde um personagem parava de ler e se dirigia à casa onde alguém que o esperava tinha começado a ler um relato para matar o tempo e chegava ao lugar onde um personagem parava de ler e se dirigia à casa onde alguém que o esperava tinha começado a ler um relato para matar o tempo.

Julio Cortázar,  em  Papéis Inesperados - Civilização Brasileira.