DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/06/2015

A JOÃO GUIMARÃES ROSA

João Guimarães Rosa
 

Tem horas em que penso
que a gente carecia,
de repente, de acordar
de alguma espécie de encantamento,

 
 
Vou lhe falar.
Lhe falo do sertão.
Do que não sei.
Um grande sertão. Não sei.
Ninguém ainda sabe.
Só umas raríssimas pessoas...
 
Sertão velho de idades...
Sertão sendo do sol...
Um espaço para os de meia-razão.
 




 
Eu sei.
Sempre sei, realmente.
Só o que eu quis, todo o tempo,
o que eu pelejei para achar,
era uma só coisa - a inteira -
cujo significado e vislumbrado dela
eu vejo que sempre tive.
A que era:
que existe uma receita,
a norma dum caminho certo, estreito,
de cada pessoa viver
e essa pauta cada um tem -
mas a gente mesmo,
no comum, não sabe encontrar;
como é que, sozinho, por si,
alguém ia poder encontrar e saber?
 
E o caminho nosso era retornar
por essas gerais de Goiás -
como lá alguns falam.
O retornar para estes gerais de Minas Gerais.

 
Maureen Bisiliat, fotógrafa inglesa naturalizada brasileira, autora de vários livros de fotografias sobre o Brasil, entre os quais destaco A João Guimarães Rosa, editado pela primeira vez em 1969, uma homenagem ao Grande sertão: veredas. Se vivo estivesse, Guimarães Rosa teria 107 anos, pois nasceu em 27.06.1908. Ele nos deixou em 1967.

TODAS AS FOTOS SÃO DE MAUREEN BISILIAT


27/06/2015

O homem e as formigas




[... ] O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor! [...] Talvez ele ame o edifício apenas de longe e não o ame de perto; talvez ele ame somente o ato de construí-lo, e não viver nele, abandonando-o depois aos animaux domestiques, como formigas, carneiros, etc. Vejam como as formigas têm um gosto completamente diferente. Elas têm edifícios extraordinários, indestrutíveis por séculos: os formigueiros.
As veneráveis formigas começaram com um formigueiro e terminarão provavelmente, também, com um formigueiro, o que muito honra sua constância e sua natureza positiva. Mas o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, goste apenas do processo de procurar atingir um objetivo, e não do objetivo em si. E quem sabe?  Não se pode garantir, mas talvez  todo o objetivo a que o homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou, em outras palavras, à própria vida, e não ao objetivo em si, o qual, evidentemente, não deve passar de dois e dois são quatro, ou seja, uma fórmula, e dois e dois são quatro já não é vida, senhores, é o começo da morte. [......] Suponhamos que o homem não faça outra coisa além de procurar esse dois e dois são quatro, atravessando oceanos, sacrificando a vida nessa busca, mas sou capaz de jurar que ele tem medo de encontrá-lo realmente. Porque ele sente que assim que o encontrar, não haverá mais nada para procurar.

Fiodor Dostoievski, em Notas do subsolo

24/06/2015

"Levanto as mãos e o vento...




 
levanta-se nelas.
Rosas ascendem do coração trançado
das madeiras.
As caudas dos pavões como uma obra astronômica.
E o quarto alagado pelos espelhos
dentro.
Ou um espaço cereal que se exalta.
Escondo a cara. A voz fica cheia de artérias.
E eu levanto as mãos defendendo a leveza do talento
contra o terror que arrebata.Os olhos contra
 as artes do fogo.
 Defendendo a minha morte contra o êxtase das imagens."
 
 
Herberto Helder em Ofício Cantante - Poesia completa

21/06/2015

Ficou para trás...



 
quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas cercando-me...
 
Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, infinita
minha sabedoria em pedaços.
E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.
 
Nem sequer um rosto trago
comigo, já trespassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios.
 
Volto sozinha
entre dois sonos lá'trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas
na minha leve túnica de fogo.
 
 
Cristina Campo, pseudônimo de Vittoria Guerrini, poeta nascida em Bolonha(Itália) - 1923-1977

18/06/2015

Assimetrias


Antônio da Costa
 
 

O dia escorre vertical pelo canto do olho. Solene impõe-se insolentemente sobre tua vida, esmagando e sufocando teus desejos... Não vale nada o que desejas, pouco importa. A vida seguirá em frente afogando-os. Somos feitos pra acabar no mar sem fim desta vida que continuará para aqueles que aqui ficarem.
Adentro a noite escura, sinto o cheiro úmido da terra, seu aroma de verde, de folhas orvalhadas caídas das árvores. Não vejo nada, sou apenas o sentir na pele do meu corpo, o cheiro forte de mato e de terra e de vida na noite escura dos mares bravios do viver.
"Um olho vê, o outro sente", disse Paul Klee, e quando o outro não vê, o olho sente ainda mais. Mergulhar no escuro é cair em si mesma, um pleonasmo existencial, se é que me faço entender, porque ao cair surpreendi-me também, eu.
 Pelo canto do olho escorre um fio de olho d'água vertical, vertiginoso, lâmina cortante que abre uma janela para o sol.


***


Le jour court verticalement à partir du coin de l'oeil. Solemne s'impose insolemment sur votre vie, broyant et étouffant vos désirs. Ne vaut rien ce que vous voulez, il n'a pas d'importance. La vie va aller de l'avant. Nous sommes faits pour finir dans la mer de cette vie que continuera pour ceux qui restent ici.
A l'interieur de la nuit noire je sens l'odeur du vert, les feuilles tombent rosée. Je ne vois rien, je me sens la peau de mon corps, la fort odeur de l'herbe et de la terre et de la vie dans la nuit sombre, de la mer agitée, de la vie.
"Um oeil voit, l'autre ressente", a declaré Paul Klee, et quand l'autre ne voit pas l'oeil encore plus ressente. Plonger dans l'obscurité est tomber em soi même, superflue existentielle, si vous savez ce que je comprends, parce que quand je me suis tombée la chute était une surprise pour moi aussi...
Dans le coin de l'oeil s'ecoue um oeil-fleuve d'eau verticale, lame raide fort que ouvre une fenêtre au soleil.

16/06/2015

Wislawa Szimborska




Opinião sobre a pornografia


Não há devassidão maior que o pensamento. Essa diabrura prolifera como erva daninha num canteiro demarcado para margaridas. Para aqueles que pensam, nada é sagrado. O topete de chamar as coisas pelos nomes, a dissolução da análise, a impudicícia da síntese, a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus, o tatear indecente de temas delicados, a desova das ideias - é disso que eles gostam. À luz do dia ou na escuridão da noite se se juntam aos pares, triângulos e círculos. Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros (...) Preferem o sabor de outros frutos da árvore proibida do conhecimento do que os traseiros rosados das revistas ilustradas, toda essa pornografia na verdade simplória (...) É chocante em que posições, com que escandalosa simplicidade um intelecto emprenha o outro! Tais posições nem o Kamasutra conhece (...)