O escritor é o guardião do repertório das histórias que o povo conta e vive, mas é antes de tudo o guardião da língua de que se serve este povo para contar as histórias do passado e as histórias que os acontecimentos de hoje (em todo o território nacional) fabricam. Numa sociedade complexa como a nossa, seria muito simples se o escritor fosse só o contador de histórias. Ele deve preservá-las, passá-las adiante, mas é responsável pela língua que as gravou. Para isso, é preciso que alargue as suas próprias possibilidades de fabricar uma linguagem, entrando por formas linguísticas que não possui, que não comanda. É assim que acaba por ter acesso ao coletivo da língua e à ficção do outro. Abrindo fronteiras, desbravando território estranho. Ganha, passa, recupera.
[...] Assim como o escritor se interessa pelo alargamento das suas fronteiras linguísticas, também o leitor tem de trabalhar nesse sentido se quiser acompanhar o romancista, lendo sua obra. Dessa forma terá acesso a um pensamento diferente do seu. Terá um melhor conhecimento do outro, do intricado funcionamento da sua cabeça e da maneira como fabrica soluções e problemas. Tudo isso sem a interferência de uma única subjetividade individual ou de classe. [...]
O leitor de jornal (ou de romance espontâneo) não quer fazer esforço algum quando lê. Contenta-se em absorver a escrita de um outro como se fosse um papel mata-borrão. Deixa-se guiar apenas pelas faculdades da memória e não pelas da reflexão. Este leitor tem uma visão fascista da literatura. Fascismo não é apenas governo autoritário e forte, de preferência militar, que deixa que se reproduzam, sem contestação, as forças econômicas da classe dominante. Fascismo existe todas as vezes em que o ser humano se sente cúmplice e súdito de normas. Amolecem o cérebro, espreguiçam os músculos, soltam a fibra.
(...) A verdadeira leitura é uma luta entre subjetividades que afirmam e não abrem mão do que afirmam, sem as cores da intransigência. O conflito romanesco é, em forma de intriga, uma cópia do conflito da leitura. Ficção só existe quando há conflito, quando forças diferentes digladiam-se no interior do livro e no processo da sua circulação pela sociedade. Encontrar no romance o que já se espera encontrar, o que já se sabe, é o triste caminho de uma arte fascista, onde até mesmo os meandros e os labirintos da imaginação são programados para que não haja a dissidência de pensamento.
Extraído de Em liberdade, escrito por Graciliano Ramos quando saiu da prisão em 1937, revisto e datilografado em 1946, e entregue a um amigo (não mencionado). Em 1952 o autor pediu ao amigo que queimasse o que havia escrito, pedido evidentemente não atendido. O escritor, poeta e ensaísta Silviano Santiago (Formiga(MG) - 1936) que editou e publicou esse diário, intitulou-o de ficção, mesmo baseando-se num trabalho de rigorosa pesquisa e na realidade factual. Além dessa obra, Silviano é autor de Uma literatura nos trópicos (ensaio), Crescendo durante a guerra numa província ultramarina,(poesia), Ensaios antológicos, entre outros.
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