DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

16/03/2017

O pastel e a crise



 
Quando a crise convida ao pessimismo ou ameaça descambar na depressão, está na hora de ler. Poesia ou prosa, tanto faz. A partir de certa altura, bom mesmo é reler. Reler sobretudo o que nunca se leu, como repeti outro dia a
um amigo que não é chegado à leitura. Ele mergulhou no Proust sem escafandro e se sente mal quando vem à tona e respira o ar poluído aqui de fora.
Verdadeiro sábio era o Rubem Braga. Tinha com a vida uma relação direta, sem
intermediação intelectual. Houvesse o que houvesse, trazia no coração uma medida de equilíbrio que era um dom de nascença, mas era também fruto do
aprendizado que só a experiência dá. No pequeno mundo do cotidiano, sabia
como ninguém identificar as boas coisas da vida. E assim viveu até o último
instante.
Certa vez, no auge de uma crise, crivada de discursos e de diagnósticos, o
Rubem estava de olho nas frutas da estação. Madrugador, cedinho já sabia
das coisas. Quando o largo horizonte nacional andava borrascoso, ele se punha
a par das nuvens negras, mas não mantinha o olhar fixo no pé-direito alto da
crise. Baixava o olhar ao rodapé, pois o sabor do Brasil está também no rés do
chão. Num dia de greve geral, inquietações no ar, tudo fechado, o Rubem me
telefonou: Vamos ao bar Luís, na rua da Carioca? Vamos ver a crise de perto.
E lá fomos. O bar estava aberto e o chope, esplêndido. Começamos por um
preto duplo, que a sede era forte. Depois mais um, agora louro. E outro. Claro
que não faltou o salsichão com bastante mostarda. Calados, mas vorazes, cumpríamos um rito. Alguém por perto disse a Vila Militar tinha descido com os
tanques. Saímos dali e fomos a um sebo. O Rubem comprou Xanã, de Carlos
Lacerda, com dedicatória. Depois pegamos o carro e voltamos pelo Aterro, onde se pode exercer o direito da livre eructação. Tinha sido um perfeito programa
cultural. E sem nenhum incentivo do governo.
Vi agora na televisão que o maracujá está em baixa e me lembrei do velho Braga. Nem tudo está perdido. Fui à feira e comprei também dois suculentos abacaxis. Caem bem nesta hora de atribulação nacional. Só falta agora descobrir um bom pastel de palmito na Zona Norte. Se o Rubem estivesse aí,
lá iríamos nós atrás da deleitosa descoberta. Depois, de cabeça erguida, enfrentaríamos a crise e até o caos.
 
 
Otto Lara Resende, 1922-1992, São João del Rei(MG), jornalista e escritor.

Um comentário:

  1. Un relato delicioso, lleno de fino humor e ironía.

    Sí a veces, cuando la vida se pone gris y parece que todos los firmamentos están a punto de derrumbarse no hay nada mejor que disfrutar de los pequeños placeres: un café bien negro, charla con los amigos, algo sabroso para degustar, un picoteo de frutas y como postre una buen libro.

    Somos capaces de enfrentarnos con la cabeza erguida a las crisis más inhumanas e injustas y hasta al caos, y me temo que "ellos" cuentan con ese poder de resistencia de la mayoría para seguir ganando.

    Muchos besos,

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