DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

04/03/2017

Queixa de defunto *


Estação do Méier em 1923

 
Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que fui em vida, na Boca do Mato, no Méier, onde acabo de morrer, por meios não posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la.
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um
pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nuca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os idreitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivesses para eu lustrar e eu não.
Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensamento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.
Nuca fui ao espiritismo, nunca fui aos "bíblias", nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.
Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda eloquência em galego ou vasconço.
Segui-as, porém, com todo o rigos e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. É bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Essa rua foi calçada há perto de cinquenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho interpelou-me logo:
- Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado - como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.
Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido a vida mais santa possível. Sou, etc., etc.
Posso garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade.
 
 
Lima Barreto (1881-1922)
 
 
* O bairro do Méier, no Rio de Janeiro, foi, no século XVIII, um engenho de cana-de-açúcar de propriedade dos padres jesuítas, que escravizavam os negros para o cultivo da cana e a extração do açúcar. Em 1760 foram expulsos pelo Marquês de Pombal sob as ordens da coroa portuguesa. Em 1884, D. Pedro, então imperador do Brasil, doou uma parte daquelas terras para o amigo Augusto Estrada Meyer, conhecido por camarista Meyer, (descendente de alemães),devido ao livre acesso que possuía às Câmaras do Palácio Imperial. Em sua homenagem o bairro passou a ter o seu nome. Posteriormente a população aportuguesou seu sobrenome passando a ser conhecido como Méier.  

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