DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/10/2021

De Paulina Chiziane



Escutai os lamentos que me saem da alma. Vinde, sentai-vos no sangue das ervas que escorre pelos montes, vindes, escutai repousando os corpos cansados debaixo da figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados. Quero contar-vos histórias antigas, do presente e do futuro, porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão-de nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura, é época de vindima, escutai os lamentos que me saem da alma, KARINGANA WA KARINGANA. *                          A xipalapala** soou, mamã, eu vou ouvir as histórias, eu vou. O culunguana*** ouviu-se do lado de lá, chegou a hora, mãe, conta-me aquela história do coelho e da rã. O búfalo enfureceu os meus tímpanos, quero ouvir coisas de terror, da guerra e da fome.


Em Ventos do Apocalipse (1993)

* Expressão utilizada pelos rongas quando começam a contar uma história tradicional; em português do Brasil corresponde a "Era uma vez"

** Corneta feita de chifre de impala, vaca ou búfalo para anunciar convocações

*** Aclamações


Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze (Moçambique) em 1955. É autora de vários livros, entre os quais estão Balada de amor ao vento; O sétimo juramento; Niketche: uma história de poligamia (Prêmio José Craveirinha); O alegre canto da perdiz; Eu, mulher: por uma nova visão do mundo; O canto dos escravizados. Em 2021 foi agraciada com o Prêmio Camões. 

27/10/2021

Memoricídio




Tudo agora é silêncio. Corro até o mar em busca da voz perdida. O ir e vir das ondas abraça meus pés docemente, sem nada dizer-me. Aguço os ouvidos, mesmo assim, ouço apenas um débil sussurrar de espumas, algo indizível, como se viesse de uma terra longínqua; uma voz em agonia que penetrou o silêncio, e se perdeu no mar: lagos, lágrimas, blocos de palavras congeladas, geleiras de vocábulos, nuvens de parágrafos condensados suspensos na vastidão oceânica.

                      Uma multidão de vozes emudecidas, aguardando a chegada de uma tempestade que rompa as comportas do medo, e do silêncio.  

18/10/2021

História de onça

 



Era uma vez uma onça! Era o que se dizia antigamente quando alguma coisa não terminava satisfatoriamente. Pois bem, a onça que anda circulando por aí, dizem, é pintada e pinta sua boca. Dentro dela existe um céu cheio de estrelas dentadas, que espalham pigmentos sobre o seu corpo; tais pigmentos se transformam em pigmeus pigmaliônicos, primos dos tigres, das jaguatiricas e até dos leões, quem sabe...? Os habitantes deste céu de boca, não se comunicam com o mundo externo, vivem numa espécie de bolha; tudo que aprendem é transmitido por um espelho que reflete imagens distorcidas, através de discursos. Todos os dias a onça abre sua boca pintada,  atrás de uma cortina (para que entre um pouco de luz) e vocifera grunhidos que são aplaudidos pela fauna que a rodeia. Tal expediente, costuma acontecer ao amanhecer e termina ao cair a noite, quando então, surge o rosto azul do mar, mesclado de estrelas.

Seria, por acaso, o corpo de um céu estrelado numa noite escura? Ou seria mesmo o céu da boca de uma onça pintada, cheia de dentes afiados, pronta para nos engolir? Em situações adversas corre-se o risco de ter alucinações. Que não me venham com paralelepípedos polidos para "urbanizar" as ruas da linguagem imaginária...!

12/10/2021

Da minha tristeza




A minha tristeza é feita das cinzas que surgem do fogo que devasta as florestas, animais, pássaros e todos os seres vivos que habitam a Terra; é feita de soluços e do silêncio involuntário das bocas sem dentes, dos estômagos vazios que, enfileirados se aglomeram nas portas dos açougues por um punhado de ossos ou pés de galinhas para matar sua fome. 

A minha tristeza é feita da poeira que se acumulou ao longo dos anos, formando pedras afiadas como facas, desafiando o abismo que há entre o Homem e a Natureza, entre a ausência e o existir.                              A minha tristeza é como o fluir da água que lava para clarear a sujeira escura. É como o fogo incandescente que brilha durante a noite, muito além da ambição gananciosa dos que se regozijam com o poder.

07/10/2021

Dois poemas de Nizar Qabbani *

 Desenhos de crianças sírias



Paixão


Entre teus seios existem aldeias incendiadas,

inúmeros poços,

restos de barcos naufragados

e armaduras de homens assassinados.

Nenhum regressou.

Todos que se deitaram entre teus seios

desapareceram

e os que nele permaneceram até o amanhecer

se suicidaram.


*****


A função da poesia é fornecer-te um passaporte

sem interferir nos detalhes da viagem

no horário dos trens que apanhas

ou no nome dos hotéis onde te hospedarás.

A função da poesia

é colocar à tua frente

a garrafa e o copo

e deixar que te embriagues

à tua maneira.


* Nizar Qabbani, nasceu em Damasco, capital da Síria, em 1923, e faleceu em 1998.