DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

08/04/2018

"Avançam contra nós os estandartes do rei do inferno

Gustave Doré, O Inferno

 
1. "Vexilla regis prodeunt inferni em nossa direção, à frente, poderás ver por fim, se o teu olhar o puder discernir" - disse-me o Guia. E assim como desce a neblina mais espessa, ou como quando, lá em nosso hemisfério, a noite fecha e um moinho, tendo as pás agitadas pelo vento, chama a nossa atenção - ali e então pareceu-me divisar vulto igual.
 
8. O vento que soprava amparo me fez buscar junto do Mestre, que outro abrigo por ali não existia. Havíamos por fim chegado - tremo ao descrevê-lo em versos - àquele ponto onde os condenados, pelo gelo cobertos, nele transpareciam como trincas no bom vidro. Alguns vi deitados; outros eretos; grande número, com pernas para o
alto, vários deles, vergados a ponto de com os pés e as faces fazerem arco.
 
16. Quando, no entender do Mestre avançáramos o bastante, decidiu-se a indicar-me a criatura que outrora exibira formoso semblante. Tocou-me e me deteve, dizendo: "Eis aí Lúcifer! Este é o local onde de extrema fortaleza convém que armes o espírito". O quanto, então, eu me senti gelado e oco, não me perguntes, leitor, que não
o saberia dizer. Afirmo sim, que todas as palavras para descrevê-lo são poucas. Digo apenas que não morri e não segui avante; se acaso és dotado do suficiente engenho, imagina o quanto estive privado, tanto da vida quanto da
morte.
 
61. Indicou-me o Mestre: "Aquela alma que sofre maior padecimento é Judas Iscariotes. Dentro da bocarra infernal, tem a cabeça, enquanto cá fora as pernas, em desespero, não cessa de agitar. Os dois outros que vês das demais bocas pendentes são Bruto, preso à boca de cor mais negra
(repara como se contorce e silencioso se mantém), e Cássio
o de membros especialmente robustos. Porém, eis que a noite se anuncia. É tempo de partirmos. Tudo já vimos do que devia ser visto.
 
88. Ergui o olhar, acreditando ver Lúcifer tal como atrás o
havia deixado e eis que o vejo de pernas para cima. O quanto me senti embaraçado nesse instante, pense-o a  gente sem instrução e todos quantos ignoram qual era o fulcro pelo qual eu havia passado.
 
127. Lá naquelas fundas paragens há um ponto que dista tanto de Belzebu quão largo é deste o sepulcro, o qual ponto não há de ser abrangido pela vista, mas pelos ouvidos. Anuncia-o o murmúrio de um arroio que o seu curso escavou na rocha, serpenteante, e que pouco pende. Ao longo de seu manso curso, pelos ouvidos seguindo ínvio trilho, meu Guia e eu buscamos regressar ao claro mundo superior. Sem jamais considerar, nem ele nem eu pelo caminho tomar descanso, fomos subindo, o Mestre à frente e eu em segundo, até que por abertura circular pude enfim
perceber, do escuro céu as grandes maravilhas. E saindo, tornamos a ver as estrelas.
 
Trechos de A divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321) - O inferno, Canto XXXIV

19/03/2018

Ouse tudo!

Flávio de Carvalho

 

Ouse, ouse...ouse tudo!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é,
aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo
bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima
como o fogo da vida!
 
Lou Andreas-Salomé, filósofa e psicanalista; nasceu em
São Petersburgo (Rússia) em 1861 e faleceu na Alemanha
em 1937.

14/03/2018

O que mudou?


"Gostaria de crer na nova geração, mas não acredito. Todos resolveram fazer da literatura um divã de psicanalista. Voltaram-se para dentro, e infelizmente o
único que se exterioriza é o 'burro blanco'. A minha geração tinha ao menos o que combater, o que destruir. Esta, encontrou o terreno aplainado e não consegue construir nada. Todos bem comportadinhos, uns garotões precoces, querendo ganhar prêmios. É difícil dizer entre eles o que escreve mais corretinho.
Mas vá remexer no fundo, vá procurar idéias, vá auscultar as inquietaçoes. Os críticos, por sua vez, limitaram-se às observações estilísticas. E julgam também que a literatura nada tem a ver com o país onde é produzida. Como todo povo subdesenvolvido, temos a mania de ser requintados. Ninguém se conforma em não ter nascido em Paris. Provavelmente teremos também literatura requintada,
mas estranha a nós, inexpressiva, fria, reacionária. Mensagem aos jovens? Besteira!
Não lerão minha mensagem. É muito mais cômodo romancear os complexos e fazer estilo. Isso dá prêmio,
 dá crítica e até emprego público".

Oswald de Andrade (1890-1954) - Extraído do Jornal da Senzala, n. 1, 1968

08/03/2018

Tisanas



 
Era uma vez uma serpente infinita. Como era infinita não havia maneira de se saber onde estava a sua cabeça. De
cada vez que se lhe tirava uma vértebra não fazia falta nenhuma. Podia-se mesmo parti-la deslocá-la emendá-la.
Ficava sempre infinita. Quem quisesse levar-lhe um bocado
para casa podia pô-lo na parede e contemplar um fragmento da serpente infinita.
 
Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito
e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando uma devorou a outra não ficou nada.
Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.
 
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção
do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efêmeras do esquecimento. Depois regressava a casa.
 
 
Ana Hatherly, Porto (Portugal), 1929-2015

02/03/2018

'Fora daqui'


 
Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o
cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: "Para onde cavalga, senhor?" Não sei direito, eu disse, só sei que é para fora daqui, fora daqui.
Fora daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo. "Conhece então o seu objetivo?" perguntou ele.
Sim, respondi, eu já disse: 'fora daqui' é esse o meu objetivo.
 
Franz Kafka, em A partida

25/02/2018

Hermann Broch e as palavras



 
Oh, cada um está ameaçado pelas palavras indomáveis de seus tentáculos, pela ramagem das palavras, pelas palavras de ramo que se enredando entre si o enredam, que crescem disparadas cada uma para o seu lado, e tornando
a retorcerem-se umas nas outras, demoníacas em sua individualização, palavras de segundos, palavras de anos, palavras que se entrelaçam na trama do mundo, na trama
dos tempos, incompreensíveis e impenetráveis em sua rugiente mudez.
 
Hermann Broch Viena(Áustria) 1886-1951, em A morte de Virgílio.

22/02/2018

Palavra



 
Dizer a última palavra sobre o assunto é
menosprezar a potencialidade do assunto.
 
A palavra e o ato vivem em conflito,
e este geralmente vence.
 
As palavras fogem quando precisamos delas
e sobram quando não pretendemos usá-las.
 
O poeta lança a palavra que ninguém usará,
e orgulha-se disto.
 
Carlos Drummond de Andrade em O avesso das coisas
 
*****
 
não existem palavras
finais
toda palavra
é
começo
esse poema não tem
fim
é o meio
 
há um sol
dentro de
cada palavra
 
todos os dias
abro janelas
para iluminar
a língua
 
Ramon Nunes Mello - Araruama(RJ)
 
*****
 
Quantas palavras constituem uma língua?
De boca em boca alimentam ideias, distorcem
pensamentos, distorcem fatos, difundem opiniões.
Abra a boca, solte as palavras que estão presas
em sua garganta.
GRITE, se preciso for!

16/02/2018

 

houve dias, há dias em que a covardia é a única
nudez possível. Há dias como hoje
em que a pátria, embora continue sendo o último refúgio
dos canalhas, é sobretudo
um destino (eu ia dizer feudal) da nossa tristeza.

sim, talvez uma estranha insônia nasça
desse instante em que, mais do que pernilongos
descobre-se parasitas reais
procurando sangue pela casa.

mas há dias em que a covardia é o café do poeta.
e há dias em que a poesia é o café do covarde.

e de novo, assim que o Rio e seus mendigos
tanto quanto os veranistas de Miami
acordarem ao som das panelas –
agora um tanto mais metálicas que este pequeno sol
de subúrbio – veremos do que são feitas
as palavras, de que carne nasce
o estranho fanal que move a fome.

talvez não sobre outro som além dos caminhões
nos canteiros olímpicos lembrando quão próximos
e quão far away estamos from Greece.

talvez não sobre outro som senão
(como na câmara anecoica de John Cage)
o deplorável coração do mundo.

e quando digo Grécia e digo mundo
espero não soar tão épico que não se possa
figurar a espécie de mediocridade
que elegi para não cair em desconforto.

no fim talvez queira não encontrar
um começo possível para este dia, nem torço
para que depressa se precipite noutra era geológica
ainda mais estúpida, ou menos, apenas
espero conseguir frequentar os mesmos mercados
que o resto da gente
sem olhar pro chão nem pro céu, procurando
entender o ponto médio
em que o macaco ciosamente descobriu
(não o fogo) a aspirina
 
Marcelo Reis de Mello - Curitiba(PR), 1984

10/02/2018

EVOÉ BACO!

Quero beber! Cantar asneiras
no esto brutal das bebedeiras
que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!



 
 
Lá se me parte a alma levada
no torvelinho da mascarada,
a gargalhar em douro assomo...
Evoé Momo!

 
 
Lacem-na toda, multicores,
as serpentinas dos amores,
cobra de lívidos venenos...
Evoé Vênus!



 
 
Manuel Bandeira - Recife(PE), 1886-1968


04/02/2018

Vale a pena sonhar!

 



Eu não quero falar de crápulas
Gente que rouba dinheiro da merenda escolar
Frauda licitações de medicamentos
Tira proveito dos salários de aposentados
Compra votos e consciências para se eleger
Usa o poder da mídia para mentir e enganar as pessoas
NÃO! Não quero gastar meu verso com eles
NÃO VALEM A PENA!
É ESCÓRIA HUMANA DA PIOR ESPÉCIE
SÓ MERECEM CADEIA! CADEIA! CADEIA!
 Quero falar do pai de família
De bicicleta às 6,30 da manhã
Indo levar dois filhos à escola.
Ele é real! Passa em frente a minha casa
Todo dia!
Da mãe que acorda às quatro
para deixar a comida pronta
e o filho na creche antes do trabalho
De quem se arrisca no mar para trazer
o seu e o nosso alimento.
De quem se desdobra em uma sala de aula
para educar os nossos filhos
Dos que pegam a condução ou dirigem
por horas, cansados, estressados
com fome, atravessando
os perigos da cidade.
De quem cuida da saúde de outros
de quem constrói
Da criança e do jovem que levantam cedo
e caminham por horas ou pegam barco, ônibus, trem
dispostos a aprender e crescer na vida.
Quero falar daqueles que organizam os sonhos individuais
em sonhos coletivos
Dos que reúnem, juntam, tomam a frente
Buscando caminhos não só para sí.
Daqueles que estão na frente da batalha
e pagam caro por isso
Muitos com a própria vida.
Dos que ajudam a transformar sonhos em planos
e planos em políticas
Ampliando as possibilidades de concretizar
o sonho de todos e de cada um
 
É a vocês que eu dedico o meu verso
embora seja pouco
È a vocês que eu louvo
É a vocês que eu canto
e digo
 
VALE A PENA SONHAR!
 
Helena Lutescia, doutora em Farmácia, e poeta.