DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/08/2012

Espelho


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão.
Não sou cruel, apenas verdadeiro -
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Na maior parte do tempo medito sobre a parede em frente.
Ela é rosa, pontilhada. Já olhei para ela tanto tempo,
Eu acho que ela é parte do meu coração. Mas ela oscila.
Rostos e escuridão nos separam toda hora.

Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,
Buscando na minha superfície o que ela realmente é.
Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e as reflito fielmente.
Ela me recompensa com lágrimas e um agitar das mãos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão.
Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha
Se ergue em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível.

Sylvia Plath, Massachusets (EUA) - 1932-1963
Tradução: André Cardoso

28/08/2012

Quebras...


Horizonte partido, minuciosamente triturado - cacos muitos, o pó a impregnar as vísceras, as entranhas:
estranhas.
A ilusão ótica azuleja o olho, oblitera a percepção, os sentidos; o olho embaçado não distingue as
máscaras e pisa inclemente sobre os sonhos.
Os espelhos distorcidos refletem as verdadeiras imagens, e o olho, - desconfie dele - enxerga apenas o que quer ver, o que necessita ver. Como dizia o sábio Guimarães Rosa, "os olhos, por enquanto, são a porta do engano". Quantos espelhos seriam necessários aos olhos para apreender as imagens que visualiza, as molduras que as contornam? De quantas madrastas é
povoada a vida? São tantos os espelhos, tantas as imagens falsas. Difícil é juntar os cacos, jogá-los no lixo sem se cortar!
No mapa do desengano, da decepção, é necessário uma lupa para encontrar, quem sabe, uma ilhazinha, que seja, para sobreviver e à noite admirar as estrelas...

24/08/2012

Dentaduras duplas


Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?...)
Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico,
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal, sossegada...
A serra mecânica
na tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca libeerta
das funções poético-
-sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.
Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdí.
Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fun do de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de ânbar? de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!
Carlos Drummond de Andrade, a Onestaldo de Penafort, em Sentimento do Mundo

21/08/2012

A intuição e a Criação







Fayga Ostrower nasceu em Lodz(Polônia) e emigrou para o Brasil aos 14 anos de idade. Foi gravadora, pintora, desenhista, escritora e professora de Teoria da Arte. São de sua autoria: Criatividade e processos de criação, Universos da arte, Acasos e criação artística.
(1920-2001)

19/08/2012

Pedras esbranquiçadas...


Pedras esbranquiçadas cada ano mais numerosas. Vale dizer cada instante. No caminho certo
se persistirem para enterrar tudo. Primeira zona já mais extensa do que à primeira vista mal
vista e cada ano um pouco mais. Espetáculo tocante sob a luz esses milhões de minúsculos sepulcros cada um único. Pouco porém com o que se consolar dela. A ser abandonado portanto
ao final pelo outro mal nomeado campo. Clorótico pasto salpicado de placas esbranquiçadas onde a relva abandonou o chão gredoso. Contemplando o calcário que aflora o olho se refaz de
sua pena. Por toda a parte a pedra invade. A brancura. Cada ano um pouco mais. Vale dizer cada instante. Por toda a parte cada instante a brancura invade.
Samuel Beckett, em Mal visto mal dito - Ed. Martins Fontes - São Paulo, 2008

17/08/2012

Os dias


Sobre as águas de um rio onde vareiros
silenciaram suas mágoas.
Sobre outro rio cantado por lavadeiras,
e o riozinho proclamado
pelos buritizeiros,
sobre os brejos sem nome
onde os riachos começam,
sobre todas as águas
o espírito perene.
Sobre o espírito das águas
que memoram os dias,
sobre um rio perdido onde os bichos do mato
beberam o fim da tarde,
sobre um vale pastoral onde os rios pensam
sobre a música da vida
dos rios reduzidos a um nome,
PARNAÍBA
sobre os rios plenos,
os dias consumados.
H. Dobal, Teresina (PI) - 1927-2008

14/08/2012

Nem tudo que brilha é ouro!








tudo lindo!
tudo maravilhoso!
a mão escorrega sobre o papel
ziguezagueando palavras:
seca, como a terra rachada
sob um sol escaldante
que teima em brilhar
impunemente
sobre a caatinga desidratada
córregos secos
água passageira
fome permanente...!

11/08/2012

Hoje


A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores
Ivan Junqueira, Rio de Janeiro (1934 - )

09/08/2012

Águia guiando águas...


passados passando na tela
do retrovisor
águas sujas turbulentas águas
límpidas
lodo pântano
um pouco de água
tanto poço que é tanta
a minha sede
quantos cântaros?
estava com muita sede
fui beber água na fonte
de boca fechada estava
a onça
céu turvo
o branco chegou e
escureceu os meus sentidos
a minha voz
apagada calou-se...

02/08/2012

Do sentimento de não estar totalmente


Sempre serei criança para muitas coisas, mas dessas crianças que trazem em si o adulto desde o princípio, de maneira que quando o monstrinho vira realmente adulto acontece que este por sua vez traz em si a criança, e nel mezzo del camin se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de ao menos duas aberturas para o mundo.
Isto pode ser entendido metaforicamente, mas de qualquer modo indica um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição que caracteriza o poeta e talvez o criminoso e também o cronópio e o humorista (questão de dosagens diferentes, de acentuação paroxítona ou proparoxítona, de escolhas: agora eu jogo, agora eu mato) se manifesta no sentimento de não estar totalmente em qualquer das estruturas, das teias que a vida constrói e onde somos ao mesmo tempo aranha e mosca.
Muito do que escreví se classifica sob o signo da excentricidade, porque nunca admití uma clara diferença entre viver e escrever; se ao viver consigo disfarçar uma participação parcial nas minhas circunstâncias, não posso porém negá-la no que escrevo porque escrevo precisamente por não estar ou por só estar pela metade. Escrevo por incapacidade, por descolocação; e como escrevo num interstício, estou sempre propondo que outros procurem os seus e por eles olhem o jardim onde as árvores têm frutos que são, naturalmente, pedras preciosas. O monstrinho continua firme.
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Adolescente, pensei como tantos outros que o meu contínuo estranhamento era um sinal anunciador do poeta e escreví os poemas que se escrevem por então e que sempre são mais fáceis de escrever que a prosa nessa altura da vida que repete no indivíduo as fases da literatura. Com o passar dos anos descobrí que, se todo poeta é um estranhado, nem todo estranhado é poeta na acepção genérica do termo. Estamos aqui em terreno polêmico, que entre na dança quem quiser.
Julio Cortázar, em A volta ao dia em 80 mundos - Civilização Brasileira