DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/09/2009

" Caso do Burro "


Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de São Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.
Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu nele este monólogo: "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me
alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo de nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."
"Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão", notou Aires consigo.
Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta coisa no serviço diplomático,
que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi, não lhe leu nada nos olhos, a
não ser a ironia e a paciência, mas não se pode ter que lhes não desse uma forma de
palavra, com as suas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele.
O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória
a esquecer Caracas e Cármem, os seus beijos e experiência política.


Extraído de " Esaú e Jacó " , de Joaquim Maria Machado de Assis ( 1839-1908)

26/09/2009

Felippo Bentivegna - A busca da memória através da Arte


Felippo Bentivegna nasceu na Sicília em 1888. Aos 25 anos emigrou para os EUA. Lá, apaixonou-se por uma americana. Por causa desse amor entrou em duelo com um rival, que desfechou-lhe um golpe na cabeça fazendo-o perder a memória. Em razão de sua incapacidade para trabalhar, foi mandado de volta à Itália. Após a Segunda Guerra Mundial, Bentivegna foi considerado desertor e condenado à prisão por três anos. Submetido a exames psiquiátricos foi considerado louco e posto em liberdade. Resolveu então comprar um lote de terra nas encostas do Monte Kronio, região rica em rochas calcáreas, onde construiu seu "castelo encantado", com centenas de cabeças humanas. Era ridicularizado pelos vizinhos, que o chamavam de louco por seu comportamento bizarro.




Quando lhe perguntavam por quê esculpia em pedras, respondia:
" Buscando a Grande Mãe dentro da terra. Ela é a semente do homem."





Faleceu aos 79 anos de idade, em 1967. Boa parte de sua obra foi perdida. Durante muito tempo ficou no abandono, exposta às intempéries do tempo e sujeita a destruição de vândalos e a saques.

18/09/2009

Um Ano "Cirandeirando"...

... E para comemorar este primeiro aninho de blogosfera, ofereço aos meus amigos(as) virtuais, uma "salada artística" da fotógrafa chinesa Ju Duogi, que utilizando
folhas, frutas e legumes cozidos, reproduziu telas de alguns pintores mundialmente consagrados... Mas, antes da "salada", quero ter o prazer e a honra de lhes apresentar um poema da paulista Nydia Bonetti, nossa companheira de blogosfera (http://nidyabonetti.blogspot.com/), que além de engenheira é uma
poeta de primeira linha:
a vida é mesmo rara
ave que canta breve
e logo voa
dente de leão
soprado pelo vento
bolha de sabão
fagulha de fogueira
cinzas nos olhos
depois do incêndio
bolhas que ardem
em nossas mãos vazias
de primaveras

"A Liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix




"O Beijo", de Gustave Klimt




Napoleão Bonaparte, de Jacques-Louis David
As fotos de Ju Duogi foram extraídas do site da BBCBRASIL.

13/09/2009

Os Joões-Ninguém ( Los Nadies )

Sonham as pulgas comprar um cão
e sonham os Joões-Ninguém deixar de ser pobres
Que algum dia mágico lhes traga a boa sorte,
que chova a cântaros a boa sorte.
Porém, a boa sorte não choveu ontem,
nem hoje, nem amanhã, nem nunca
Nem a chuvinha cai do céu, nem a boa sorte,
por muito que os Joões-Ninguém a chamem
Ainda que lhe acenem com a mão esquerda,
ou se levantem com o pé direito, ou comecem
o ano mudando de escova de dentes
Os Joões-Ninguém: os filhos de ninguém,
os donos de nada
Os Joões-Ninguém: os nenhuns, os sem nome,
correndo como lebres, morrendo a vida
Fodidos e refodidos
Aqueles que não são, ainda que sejam
Que não falam idiomas, apenas dialetos
Que não professam religião, apenas superstição
Que não fazem arte, apenas artesanato
Que não fazem cultura, apenas folclore
Que não são seres humanos, apenas recursos humanos
Que não têm rosto, apenas braços
Que não têm nome, apenas um número
Que não figuram na história universal,
apenas na crônica vermelha da imprensa local
Os Joões-Ninguém que custam menos
que a bala que os mata!
Tradução livre de "Los Nadies", de Eduardo Galeano, escritor uruguaio.
Foto extraída de: Agência Carta Maior
Escultor de cerâmica marajoara
Refugiados da Etiópia - Foto: Sebastião Salgado

08/09/2009

Jacinta Passos - Resgatando uma Poeta Brasileira!




Canção do Amor Livre

Se me quiseres amar, não despe somente a roupa
Eu digo: também a crosta feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti, pelo sangue recebida, tecida de medo
e ganância má. Ar de pântano diário nos pulmões.
Raiz de gestos legais e limbo do homem só numa ilha.
Eu digo: também a crosta essa que a classe gerou vil,
tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar. Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre.
Madeira e água deslizante, fuga ai rija cintura
de potro bravo. Teu corpo.
Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.


William Turner

Meu Sonho


O meu sonho mais risonho

é suave e pequenino, resumindo
entretanto o meu destino.

É de cor azul sonora como o mar

que longe chora.

É cor de infinito e de ânsia,

cor de céu, cor do mar, cor de distância.

Tem a leve suavidade da saudade.

E a cantante doçura de um regato

que murmura. Macio e encantador,

é carícia de pluma e perfume de flor.

O meu sonho mais risonho,

é para mim cada momento:

o motivo maior de doce encantamento.

(publicado no D.O. da Bahia, jan. 1991)


Foto extraída do blog acreditandonotruque de Janaína Amado, sua filha



Jacinta Passos, professora, jornalista e poeta, nasceu em 1914, numa fazenda pertencente ao município de Cruz das Almas (a 146 m de Salvador), no recôncavo baiano. Trabalhou como jornalista em jornais de Salvador, além de escrever para jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Teve posição marcante em defesa dos direitos da mulher. Foi militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e durante a ditadura militar de 1964, foi presa e internada em sanatórios como louca, chegando a receber eletrochoques. Publicou quatro livros de poemas: "Momentos de Poesia", "Canção da Partida", "Poemas Políticos" e "A Coluna". Faleceu num sanatório de Sergipe, em 1973.

Será publicado em breve o livro Jacinta Passos-Canção Atual, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia(Fapesb) contendo textos inéditos, sua biografia e ensaios escritos por intelectuais, sobre sua obra, graças à iniciativa de sua filha Janaína. Sinto-me orgulhosa e privilegiada de ter conhecido alguns de seus poemas e um pouco de sua biografia. E honrada por apresentá-la aqui, a vocês, meus queridos amigos virtuais, em especial, Janaína, sua filha, que gentilmente permitiu-me fazer a postagem.
Acho que tenho obrigação de fazer isso. E o faço também com muito prazer.

07/09/2009

À VIDA !




Não roubarás minha cor vermelha


de rio que estua.


Sou recusa. És caçador.


Persegues: eu sou a fuga


Não dou minha alma cativa!


Colhido em pleno disparo,


curva o pescoço o cavalo árabe


- e abre a veia da vida.




Marina Tsvetáieva, poeta russa que matou-se durante o período stalinista, na
Rússia. (1892-1941) - Tradução de Haroldo de Campos

03/09/2009

Um pouco de Mitologia...

Quinto Horácio de Flaccus
Epístola aos Pisões

Se um pintor à cabeça humana unisse pescoço de cavalo, e de diversas penas vestisse o corpo organizado de membros de animais de toda a espécie, de sorte que a mulher
de belo aspecto, em torpe e negro peixe rematasse, vós, chamados a ver esta pintura,
o riso sofreríeis? Pois convosco assentai ó Pisões, que a um quadro destes será mui semelhante àquele livro no qual ideias vãs se representam (qual o sonho dos enfermos), de tal modo, que nem pés, nem cabeça a uma só forma convenha. De fingir ampla licença ao poeta e ao pintor sempre foi dada. Assim é, e entre nós tal
liberdade pedimos mutuamente, e concedemos; mas não há de ser tanta que se ajunte
agreste com suave, e queira unir-se ave e serpente, cordeirinho e tigre.


Trecho de "Ars Poetica", de Quintus Horatius Flaccus ( 65 a.C - 8 a.C), filósofo, poeta lírico e satírico, considerado um dos maiores poetas da Roma Antiga.

Erato - de Simon Vouet (1590-1649)

Erato, uma das nove musas que presidiam as artes e as ciências, com o dom de inspirar os governantes e restabelecer a paz entre os homens(!?). Era filha de Zeus,
o rei dos deuses e de Mnemosine, a deusa da memória. Representava a Poesia Lírica.


Clio e o carro da História
Clio também, era uma das nove musas que habitavam o Olimpo, irmã de Erato. Era considerada a musa da História e da Criatividade, divulgando e celebrando as realizações. A ela é atribuída a invenção da guitarra e a introdução do alfabeto fenício na Grécia. Um dos nove livros de Heródoto (historiador da Antiguidade), leva o nome de Clio em homenagem à deusa.