Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de São Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.
Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu nele este monólogo: "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me
alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo de nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."
"Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão", notou Aires consigo.
Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta coisa no serviço diplomático,
que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi, não lhe leu nada nos olhos, a
não ser a ironia e a paciência, mas não se pode ter que lhes não desse uma forma de
palavra, com as suas regras de sintaxe. A própria ironia estava acaso na retina dele.
O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória
a esquecer Caracas e Cármem, os seus beijos e experiência política.
Extraído de " Esaú e Jacó " , de Joaquim Maria Machado de Assis ( 1839-1908)
"O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio"
ResponderExcluirComo isso é bonito... Beijo.
Machado de Assis é mesmo o nosso escritor maior, não resta a menor dúvida. Pelo menos para mim...! Cada vez que o leio descubro algo
ResponderExcluirnovo, surpreendente, como se o estivesse lendo pela primeira vez!