Era sábado, e o correio estava fechado. Só faltava essa, pensou, atirando a carta na lata do lixo. Sentou num banco da praça, a esmo. Eu tenho o dobro da idade que tu tinhas quando tinha a idade que tudo tens; falta a segunda equação e, portanto, falta tudo. Quem diabo foi Bartolomeu Mitre? Visconde de Albuquerque? Ataulfo de Paiva?
Antero de Quental? Esta praça poderia muito bem chamar-se Carlos Drummond de Andrade, ora se, mas pouca gente percebeu isso. Estou sem mulher, estou sem discurso, estou sem teogonia, hoje beijo, amanhã não beijo e segunda-feira ninguém sabe o que será.
Tinha que fazer alguma coisa, em vez de ficar alí, enxugando gelo, e decidiu caminhar até o barbeiro.
- Deixa comigo, doutor .
O barbeiro assumiu a conversa em caráter de exclusividade, falando tudo e coisa nenhuma. Sou Flamengo, no verão as mulheres ficam mais bonitas, não tenho ido a Itaperuna, Barack Obama é diferente de Bill Clinton, que não respeitava nem papagaio embriagado, os melhores chopes são os do Bracarense, Jobi e Clipper e, na cidade, o do Bar Luís, o Ney Matogrosso, que tem tudo para não ser tão modesto, corta cabelo aqui, o João Ubaldo Ribeiro também, o Alceu Valença mora aqui na rua, mas não corta cabelo em lugar nenhum, um dia ainda saberei o que significa crise cambial, a palavra mais sugestiva que conheço é bunda, amanhã vou bater uma bola federal...
- Você joga bola nos domingos?
Jogava. Todos os domingos disputava duas ou três partidas no campinho da Pavuna, tomava dez latas de cerveja, comia duas horas de feijoada com muita caipirinha e dormia até a manhã de segunda-feira. Estevinho ponderou que era um hábito perigoso, bom seria consultar um cardiologista, fazer um teste ergométrico, pois os atletas de fim-de-semana, muitas vezes se surpreendem, vítimas de enfarto, e podem morrer durante o jogo.
- Ora doutor, faço isso desde os 18 anos, estou com 38, nem sei se tenho coração. Esse negócio de médico não é necessário quando o cabra é macho. Meu pai jogou até os 60 anos e mais não joga porque tem um problema no joelho.
Na saída, dei uma gorjeta generosa e ainda acrescentei, alto e bom som:
- Se fosse você, Godô, só jogaria após exame médico e autorização de um cardiologista, pois você pode morrer em pleno campo.
Havia um pouco de show-offismo nas minhas palavras, mas disse aquilo de boa fé. O Godô estava falando sem parar havia vinte minutos, e, eu, absolutamente calado. Sei lá... De vez em quando, é necessário falar também, interessar-se, ser solidário. Mas, diabo...Por que não interrompí quando o assunto foi Bil Clinton? Ney Matogrosso? João Ubaldo era também um tema adequado, pois gosto muito daquela do cachorro que se chamava Logoeudigo. Cachorro ou gato? Podia puxar assunto sobre Claire Danes, Jessica Biel... Mas eu decidí dar conselho, cacete. Na segunda-feira recebí a notícia: Godô faleceu jogando futebol, no domingo. Toda a barbearia e a Rita Ludolf inteira atestaram que o barbeiro não morreu espontaneamente. Jogava desde os 18 anos e nunca tinha acontecido nada. Aí veio o tal de Estevinho e disse: você pode ter um ataque cardíaco em pleno jogo.
Todo mundo ouviu, o Ricardinho, o Miranda, o Ernani, o Pintinho e o Zeca Torres. O Quincas não ouviu porque tinha ido à farmácia. Nossos outros clientes, o doutor Zé Moacir, o Terêncio Marques, o Antonio Maciel, todos, todos mesmo, podem confirmar: ele matou o Godô.
- Agourento de uma figa!
O Quincas garantiu que em Baependi tem um alfaiate que bota mau-olhado: se ele olha um passarinho na gaiola, o passarinho amanhece morto, não há escapatória. Se disser vai chover amanhã, sai de baixo que amanhã vem temporal, enchente, desabamento, aflição e morte. Certa vez o celerado afirmou que era certo faltar carne em Baependí; e no mesmo dia os bois de corte comeram ração envenenada e morreram.
- Gente com essa qualidade gosta de fazer o mal, e somente o mal.
- Olho vivo, seu Venâncio, olho vivo.
Seu Venâncio ficou impressionado e, para salvar o negócio, mandou vir o padre, que benzeu a barbearia e derramou água benta na cadeira do Godô. De mãos dadas, todos rezaram com redobrado fervor um Padre-Nosso e um Salve-Rainha. Depois do episódio, Estevinho mudou de barbearia e não teve mais coragem de passar pela Rita Ludolf. A morte de um ciclista, matar ou morrer, morte em Veneza, morte e vida Severina, os vivos e os mortos, a morte passou por perto, as sete máscaras da morte, a morte do caixeiro-viajante, disque M para matar, quem matou Baby Jane?
- Eu Estevinho Pastasciutta, matei o barbeiro.
"Eu, panaca, matei o barbeiro e havia muitas testemunhas", conto de Remo Mannarino, engenheiro, natural de Muriaé(MG), autor de "O Homem horizontal" (romance) e "Hamlet e Macbeth nasceram em Muriaé" (contos).
Cirndeira: Estavas inspirada mesmo! Lindo Texto. Mas difícil. Li, reli e ainda estou elaborando-o. Coitado do Venâncio, e sei lá mais quem estiver nessa ciranda!
ResponderExcluirestou com saudades... Precisamos trocar figurinhas!
com carinho
Sílvia
PS.:Vá na minha Casa. Estavba bem abandonadinha. Só M. Ajuste. Hoje me dei um miminho. se desejar, pode entrar!
Obrigada pela visita, Sílvia.
ResponderExcluirO conto de Remo Mannarino é mesmo muito interessante, além de escrever muito bem, ele tem umas boas tiradas de humor e sempre nos desperta para questionamentos de coisas que âs vezes nos passam desapercebidas. Gosto muito do que ele escreve.
Beijos
Parbéns por nos trazeres sempre coisas tao deliciosamente boas!!!
ResponderExcluirKandandu
Obrigada, Namibiano. És sempre muito gentil e
ResponderExcluirgeneroso...!!
Kandandu