DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/10/2010

"Tudo me interessa e nada me prende"....

Hans Varella
O coração, se pudesse pensar, pararia.

*****

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei de nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

*****

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.


*****

Tudo me ineteressa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos, mas ao ouví-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhí da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repetí, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordadava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.



Do Livro do Desasossego - Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa.

6 comentários:

  1. Adoro esse livro, Ci.
    O meu está todo marcado de tantas passagens.
    bj :)

    ResponderExcluir
  2. saludos y mucho aprecio para usted.
    un abrazo

    ResponderExcluir
  3. Sim, uma estalagem a vida. E o que esse viajante escreveu, mais do que apenas me entreter, me impressiona profundamente!

    Abraço.

    ResponderExcluir
  4. Olá, bom dia!

    Faz um tempinho que por aqui não passava

    e logo venho dar de caras

    com o incontornável Fernando Pessoa!

    Excelente escolha!

    Bom fim de semana.

    Saudações poéticas

    ResponderExcluir
  5. Querida cirandeira,

    Esta voz de Bernardo Soares,este dizer-se desdizendo-se.Este Fernando e cem pessoas a lhe habitar a alma e a me levar por multidões.
    Queria e muito ter mais tempo para te visitar.
    Sempre acrescentas com tuas composições,bom gosto e pesquisa.E além,generosidade.

    Obrigada,


    Cris


    Vou esticar o tempo por aqui...hoje posso.

    ResponderExcluir
  6. Desassossegadamente se lê Bernardo Soares, enquanto se espera pela suposta diligência. Tudo fica relativo, tudo tem (ou não) um contrapeso que às vezes pesa, outras nem tanto.
    Fiquemos, pois, em desassossego.

    beijo :)

    ResponderExcluir