DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/05/2011

Da cólera ao silêncio



Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, é enfiar um dedo na garanta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. (...) Escrever - e você sabe disso - pode eliminar essa sensação de gratuidade no eixtir, de coisas o tempo todo fugindo e se transformando em passado. Eu acho então que se escrever te dá um sentido para estar vivo (ou a ilusão de um sentido, que importa?) então vai e escreve e diz tudo e rasga o coração, as vísceras, expõe tudo, grita, esperneia - no papel. Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora.


Caio Fernando Abreu, jornalista, escritor e dramaturgo. Santiago(RS) - 1948-1996

Instalação de Mathilde Roussel Giraudy

29/05/2011

Capricho



Detrás de cada espejo

hay una estrella muerta

y un arco íris niño

que duerme

Detrás de cada espejo

hay una calma eterna

y un nido de silencios

que no han volado

El espejo es una momia

del manantial, se cierra,

como concha de luz

por la noche

El espejo

es la madre-rocio.

el libro que diseca

los crepúsculos, el eco hecho carne


Federico Garcia Lorca


Capricho


Por trás de cada espelho

há uma estrela morta

e um arco-íris menino

que dorme

Por trás de cada espelho

há uma calma eterna

e um ninho de silêncios

que não voaram

O espelho é uma múmia

do manancial, se fecha

como uma concha de luz

através da noite

O espelho

é o orvalho-mãe,

o livro que disseca os crepúsculos,

o eco feito carne

Tradução livre

26/05/2011

Que esforço!



Morte



Que esforço!

Que esforço do cavalo para ser cachorro!

Que esforço do cachorro para ser andorinha!

Que esforço da andorinha para ser abelha!

Que esforço da abelha para ser cavalo!

E o cavalo,

que flecha aguda ele extrai da rosa!

Que rosa cinza ele levanta de seu focinho!

E a rosa,

que rebanho de luz e de gritos

ela liga ao suco vivo de seu talho!

E o açúcar,

que pequenos punhais ele sonha acordado!

E os minúsculos punhais,

que lua sem estábulo, que nus,

pele eterna e rubor eles procuram!

E entre os toldos,

que Serafim de chama eu procuro, e sou?


Federico Garcia Lorca, Granada(Espanha), 1898-1936

24/05/2011

"A resposta está no vento..."





Quantos caminhos um homem deve andar

para que seja aceito como um homem?

Quantos mares uma gaivota cruzará

para poder descansar na areia?

Quanto tempo as balas dos canhões explodirão

antes de serem proibidas?

A resposta meu amigo, está no vento...

Quantas vezes deve o homem olhar para cima

para poder ver o céu?

Quantos ouvidos o homem deve ter

para ouvir os lamentos do povo?

Quantas mortes ainda serão necessárias

para que saiba que já matou demais?

Quanto tempo pode uma montanha existir

antes que o mar a desfaça?

Quantos anos pode um povo viver

sem conhecer a liberdade?

Quantas vezes um homem vira a cabeça

fingindo não ver o que está vendo?

A resposta meu anigo, está no vento...


Versão da cantora/compositora Diana Pequeno

23/05/2011

"Não nascí para resfriar o mundo..."



Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos



Não nascí para resfriar o mundo

Neste lerdo cortejo de omissões

Estas palavras interditas

Suspensas

Não vim quebrar as pernas do sol

Silenciar cada bemol

Não vim para arrebentar o anzol

Do velho Hemingway

Sou mar e trovão no coração

Nascí para amar sem lastro

Para dançar no pátio

It is my way


do livro "A flor dentro da árvore" (inédito) de Bárbara Lia, Assaí(PR), poeta e escritora, autora do romance "Solidão Calcinada".

21/05/2011

Poema da Felicidade Compulsória



Ela é dessas piromaníacas

ateia fogo

ao próprio corpo

pra ter um pouco

de calor

e de luz

Vai dançando nos intervalos

seus pequenos

suicídios

e infernos

em suas próprias

cinzas calcinadas

Do que lhe resta

meia arcada dentária

basta

a faculdade de sorrir

não pode passar em branco


Reinaldo Ramos, Rio de Janeiro

19/05/2011

Jamu Minka - dois poemas



Safari



Aquela tigresa é tanta

que me almoça e janta

faço de conta que a sala é ponto

na geografia da África

e o tapete vira suave savana ao entardecer

quando a pele da noite vem camuflar

nosso safari safado.



Ejacoração



Quando tua ausência se multiplica em dias

eu me divido em saudades

consciente ou não

e de resto sobram poemas

quando a vida devolve oficialmente tua presença

o coração dá voltas

e dispara ejaculando promessas de amor.


Jamu Minka, pseudônimo de José Carlos de Andrade, nascido em Varginha(MG)

18/05/2011

Poema tirado de uma notícia de jornal

Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro

João Gostoso era carregador de feira livre

e morava no morro da Babilônia

num barracão sem número.

Uma noite ele chegou ao bar Vinte de Novembr0

Bebeu

cantou

dançou

Depois se atirou

na Lagoa Rodrigo de Freitas

e morreu afogado.


Manuel Bamdeira, Recife(PE) (1886-1968), Em Libertinagem, 1930.

16/05/2011

Porta Aberta



Os meus segredos gritam alto.

Não tenho necessidade de língua.

O meu coração oferece hospitalidade,

as minhas portas se abrem livremente.

Um épico dos olhos,

o meu amor, sem qualquer fantasia.

As minhas verdades estão previstas,

esta angústia auto-revelada.

Estou despido até aos ossos,

com a minha nudez me escudo.

Visto-me a mim mesmo.

Conservo sóbrio o espírito.

A raiva permanecerá,

os atos dirão a verdade

em linguagem exata e pura.

Detenho a boca mentindo:

a fúria guia o meu grito mais claro

a uma agonia tonta.



Theodore Roethke, Michigan(EUA) - 1908-1963)

15/05/2011

Um conto sul-coreano





Depois que a Coreia se tornou livre da ocupação japonesa em 1945, a penísula foi ocupada pelo exército soviético ao norte e pelos norte-americanos ao sul, sob o pretexto de garantir a ordem social até a realização das eleições, mas o resultado disso foi o fechamento de uma fronteira interna em 1948. Em 1950 eclodiu a guerra que dividiu a Coreia em dois países: a Coreia do Sul e a Coreia do Norte.


A máscara


Levantava o corpo caído baleado na perna quando um facão atravessou-lhe o

peito. No instante em que perdia a consciência, o rosto do outro se gravou na pupila do soldado como que marcado a fogo. O sangue vertido no peito se esparramou sobre a terra. Era uma encosta de montanha parecida com a que

havia perto da vila natal, embora estivesse longe de sua terra.

O sangue permeou a terra e se tornou terra. No começo era de uma cor um

pouco mais escura do que a da terra ao seu redor, mas, aos poucos, foi se tornando uma cor só. A terra era a própria vida para este soldado que no passado arara a terra. A raiz de uma eulália, quase que furtivamente, foi sugando pouco a pouco a seiva do soldado. O soldado se tornou eulália.

Confusas botas militares pisotearam a eulália de cima a baixo da montanha.

No inverno, botas ainda mais pesadas pisaram-na por cima da neve que a cobria. Pisaram-na várias vezes e muitas vezes mais. No entanto, a eulália não morreu. Depois que as botas se foram, a eulália foi sacudida pelo vento de primavera, aquecida ao sol de verão, lavada pela chuva e orvalho, coberta pela neve, e novamente agitada ao vento de primavera. Numa primavera tardia, um camponês ceifou a eulália e a levou para um estábulo.

Tornou-se boi. O camponês dono do estábulo cuidava do boi como o membro

mais precioso de sua família, assim como fizera o soldado quando camponês. O soldado trabalhou arduamente junto ao seu novo dono camponês.

Trabalhou até criar calos no couro. Mas a vida difícilmente melhorava. Entrava ano e saía ano, mas era tudo igual. Numa noite, depois de uma enchente que devastou a plantação, o camponês acariciou o pescoço do

soldado e chorou em silêncio. Depois, o soldado passou pela feira, trem de carga, abatedouro e, finalmente, foi pendurado no açougue de uma cidade. Foi feito em pedaços para ser vendido. Foi quando encontrou alguém que parecia conhecer. Era o homem que lhe atravessara o peito com um facão na encosta da montanha. Arrastava-se pelas ruas mendigando. No resto de comida que havia mendigado de um restaurante, comeu a carne do soldado. O soldado entrou no homem.

O homem recuperou as forças repentinamente, jogou no chão a lata que segurava e saiu andando. No macacão de trabalhador que vestia, todo gasto, pendia mole uma das mangas sem braço. Foi andando até uma fundição e parou em frente. Trabalhara lá como torneiro antes de perder o braço no

campo de batalha. Sem titubear, entrou decidido na fábrica. Estava lá o mesmo supervisor de antigamente.

- Como vai o senhor?

O desagrado era claro na expressão do supervisor. Tirou o cigarro da

boca e o esmagou com a ponta do sapato.

- Senhor supervisor! Não precisa ficar aborrecido. Hoje não vim para

aporrinhar, sabe? Vim trabalhar, como eu fazia antes.

O supervisor lançou um olhar apreensivo para a manga que pendia mole sem braço.

- O que está olhando? Olhando direto nos olhos do supervisor, o homem continuou:

- Tá certo que tenho uma perna inutilizada porque fui baleado, mas isso não

quer dizer que eu não possa fazer o trabalho de torno, não é?

Enquanto falava com todo o corpo, a manga sem braço balançava mole, mole.


Huang Sun-Won(1915-200), tem sete romances, mais de uma centena de contos e poemas publicados. Após a divisão das duas Coreias, teve que fugir para a do Sul por ser de família abastada.

Tradução de Yun Jung Im - "Contos Contemporâneos Coreanos"

13/05/2011

"Vozes-mulheres" - Uma homenagem às mulheres negras!




A voz de minha bisavó ecoou criança


nos porões do navio.


Ecoou lamentos


de uma infância perdida.


A voz de minha avó


ecoou obediência


aos brancos donos de tudo.


A voz de minha mãe


ecoou baixinho revolta


no fundo das cozinhas alheias


debaixo das trouxas


roupagens sujas dos brancos


pelo caminho empoeirado


rumo à favela.


A minha voz ainda


ecoa versos perplexos


com rimas de sangue


e fome.


A voz de minha filha


recolhe todas as nossas vozes


recolhe em si


as vozes mudas caladas


engasgadas nas gargantas.



Conceição Evaristo é escritora e poeta, nascida em Belo Horizonte(MG).

É formada em Letras pela PUC-RJ, mestra em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada. Reside no Rio de Janeiro.

11/05/2011

A escrita é outra

Belo Horizonte(MG)


Leio no jornal uma entrevista com o autor de Cem Anos de Solidão. Só que seu nome é Gabriel Garcia Márquez e não Marques, como saiu publicado.

Não que eu seja lá muito cioso dessas coisas, pelo contrário: meus lapsos ortográficos costumam ser bem mais graves que uma simples troca do z pelo s. Fixei na memória a grafia certa do nome do escritor, não só por ter sido com Rubem Braga o seu primeiro editor no Brasil, mas principalmente por causa daquela sensacional entrevista sobre ele, que dei na época a uma estagiária de um jornal do Rio.


- Me mandaram fazer com você uma entrevista sobre o marquês - e ela foi ligando logo o gravador.

- Que marquês? - estranhei.

- Esse que vocês editaram.

- Não editamos nenhum marquês, que eu saiba.

- O autor desse best-seller de vocês, Cem Anos de Perdão.

- De solidão.

- Ou isso; de solidão. Ele não é marquês?

- Não. Ele não é marquês. O nome dele é Gabriel García MÁRQUEZ, com z no fim. Se duvidar, é capaz de ter até acento no a.

- Então é isso. Foi confusão minha - e ela não se deu por achada, muito menos por perdida, sempre empunhando um gravador junto ao meu nariz. - Por que é que o livro dele está fazendo tanto sucesso?

- Porque é um livro muito bom.

- Foi por isso que vocês publicaram?

Respirei fundo.

- Por isso o quê, minha filha? Por ser muito bom?

Ela me olhou como se estivesse entrevistando uma toupeira.

- O que eu estou querendo saber é por que vocês publicaram o livro dele.

- Porque nos foi recomendado como um livro muito bom.

- Recomendado por quem?

- Pelo Neruda.

- Quem?

- Pablo Neruda. Quando ele esteve no Rio pela última vez, falou com o Rubem que se tratava do romance mais importante em língua espanhola desde Dom Quixote.

- Quem é esse?

- Esse quem? O Rubem?

- Não; o outro.

- Dom Quixote?

- Não; esse cara que você falou antes. O que recomendou livro Resolví deixar cair:

- Você vai me desculpar, minha filha, mas não dá. A entrevista fica para outra vez, quem sabe. É muita honra para um pobre marquês, mas infelizmente... Ou Márquez, se você não se incomoda. No mais, muito obrigado.

- Eu é que agradeço!

Ela desligou o gravador, com ar satisfeito, despediu-se e foi embora.

Tudo depende do nosso ponto de vista em relação ao assunto. O meu era de fremte, em relação a esta outra: uma estudante de seus dezoito anos(vestibular do curso de Letras) que vinha a ser um verdadeiro esplendor.

Esplendor de nossa raça, bem entendido: direi em resumo que tinha competência para passar no vestibular do que quisesse, no que dependesse de apresentação física. Sua pele era da cor de sorvete de chocolate, daquele mais claro, mas não tão fria, muito antes pelo contrário, viva e cálida como a de um fruto - cor de jambo, como se dizia antigamente, só que já não me lembro bem da cor do jambo, faz tempo que não vejo um. O rosto era brejeiro, como também se dizia antigamente. E o corpo perfeito como...

- Como?

- Eu perguntei o que faz um redator.

Sentada à minha frente, ela deixara o eterno gravador ligado sobre a mesinha entre nós e esperava pela minha resposta, pernas cruzadas, joelhos à mostra. Descruzei as minhas.

- Não entendí bem a pergunta. Antes de mais nada, como é mesmo o seu nome?

-Lindalva - respondeu com voz de criança.

-O que foi mesmo que você me perguntou, Lindalva?

- Perguntei o que faz um redator.

- Um redator? Um redator redige, não é isso mesmo? Mas por que você me perguntou isso?

- Ela descruzou as pernas.

- Você não é um redator?

Cruzei as minhas.

- Bem, de certa maneira...no jornal não sou propriamente um redator, mas um cronista. Ou um colunista, se você prefere. Também redijo, não há dúvida, mas o que eu sou na realidade é um escritor.

- E o que faz um escritor? - ela perguntou então, inalterável.

Meu Deus, vai começar de novo.

- Um escritor escreve - respondí com um suspiro resignado.

- Não é isso que eu quero saber - reagiu ela, fazendo beicinho.

- Então pergunte o que você quer saber, Lindalva.

- Quero saber o que eu perguntei: o que faz um escritor - e ela tornou a cruzar as pernas.

Descruzei as minhas. Eu já lhe mostro o que faz um escritor:

- Um escritor é um sujeito que só sabe perguntar e não responder a perguntas. Ainda mais perguntas como essa.

De repente entendí:

- Ah, você está querendo saber não a função que exerce um escritor, mas as qualidades intrínsecas que fazem de uma pessoa um escritor, não é isso mesmo?

- Isso mesmo, o que é que faz um escritor?

- As qualidades intrínsecas - arrematei.

- Qualidade o quê?

- Intrínsecas.

- Ah, sei...

Ela mostrou os dentes arindo os lábios num sorriso. Pensou um pouco, e não lhe ocorrendo mais nada a perguntar, desligou o gravador, dando a entrevista por encerrada.

Chegou a minha vez de perguntar:

- Que faz uma pessoa como você, Lindalva?

- Como eu, como?

- Como eu como?

Cruzei as pernas, sem que ela descruzasse as suas.

- Estou querendo dizer é que acho surpreendente uma moça como você perdendo tempo em me entrevistar.

Acompanhei-a até a porta:

- Por que não entrevista o Sargentelli, e suas lindas mulatas do Oba-Oba? Você tem futuro.

- Ele também é escritor?

Disse-lhe que não: a escrita dele era outra.

- Gosto muito dos seus escritos - comentou ela, com um trejeito.

- E eu dos seus.

- Dos meus escritos?

- Dos seus encantos - emendei.

- Então tá - e ela estendeu o rosto me oferecendo a face, muito faceira, para um beijo de despedida.


Fernando Sabino, escritor, nascido em Belo Horizonte(MG) ((1923-2004)

08/05/2011

Dialogando com o público leitor

Itaparica(BA)Foto: Tito Garcia


- Boa-tarde, o senhor me desculpe eu estar interrompendo sua leitura, mas é só um minutinho.

- Ah, pois não.

- É o seguinte, não é o senhor que é o escritor? O menino alí me disse que o senhor é o escritor.

- Bem, não sei se sou o escritor. Mas sou um escritor, sou, sim.

- Madalena, venha cá, é ele! Madalena! Chame Rosalvo e os meninos, é ele!

- O que foi que houve?

- Madalena é minha esposa, ela estava com vergonha de perguntar se era o senhor mesmo o escritor. Ela me disse que já tinha ouvido muito falar no senhor. E Rosalvo é meu cunhado, que conhece sua obra, é gente boa.

- Sim, eu...

- Não vou interromper nada, pode ficar descansado, o senhor pode continuar com sua leitura.

- Eu...

- Madalena, é ele mesmo! Você tinha razão, é ele. É boa gente, você sabe? Estamos aqui numa prosa ótima, ele é a simplicidade em pessoa. Olha aí, Rosalvo, é ele. Pode sentar, rapaz, ele não morde, ha-ha-ha!

- Muito prazer, dá licença.

- Eu...

- Meu nome é Rosalvo Luiz da Anunciação Pereira, mas eu costumo assinar apenas Anunciação Pereira.

- Ah, sim, interessante.

- Admiro muito sua obra, O sargento de milícias.

- Mas não fui eu quem escreveu esse, foi outro. Bem que podia ter sido eu, mas não fui eu.
- Ah, então o senhor não é autor do "Sargento"?
- Sou, mas de outro sargento, o sargento Getúlio

- Ah, mas é claro, que besteira minha. O sargento de milícias é de Lima Duarte, não é?
- Lima Duarte? O sargento...
- Sim, Lima Duarte, do Policarpo Quaresma, grande autor, para mim maior do que Machado de Assis.
- Lima Barreto.
- Sim, claro, claro, Lima Barreto, eu sempre confundo. Lima Duarte é outro.
- E não foi Lima Barreto quem escreveu O sargento de milícias.

- E quem foi?

- Manoel Ant...Deixa pra lá, tudo bem, Seu Rosalvo.

- Pelo amor de Deus, nada de formalidades, que é isso de "Seu Rosalvo", os amigos a gente trata pelo nome.

- Muito obrigado, gentileza sua.

- Que é isso que você está bebendo aí, posso dar uma cheiradinha? Ah, isso é caju! De hoje que eu não tomo uma batida de caju, vou pedir uma também enquanto a gente conversa, é coisa pouca, não vou tomar seu tempo, eu sei que você é um homem ocupado e precisa ler o jornal para estar por dentro do que acontece, o escritor tem de estar informado.

- Pois é, eu...

- Madalena, peça uma batida de caju aí no boteco e traga uns acarajés, uns abarás, uns tira-gostos, umas coisinhas. Quem bebe tem que comer, não é não?

- É, mas eu, pessoalmente, quando estou bebendo...

- Não vou tomar o seu tempo, vou direto ao assunto. Eu também sou escritor.

- Ah, que bom, eu...

- Mas até hoje só publiquei um livro, que eu mesmo custeei, um livro de poemas em prosa e mais alguns escritos que eu reuní. Se eu soubesse que ía lhe encontrar aqui, eu lhe trazia um exemplar. Chama-se "Retalhos de mim". Não quero ser imodesto, mas muita gente boa...Não sei se você conhece o professor Martinho Lobo, conhece o professor Martinho Lobo?

- Não, infelizmente não, eu ...

- Não conhece Martinho Lobo, da Academia de Odontólogos Escritores, que foi muitos anos professor de portuguêsa no Central?

- Não, infelizmente...

- Bem, eu vou lhe mandar a cópia de um artigo que Martinho Lobo escreveu na Gazeta de Ipiaú a respeito desse livro meu, você vai ver que comentário interessante, ele foi muito feliz nas observações dele.

- Sim, mas eu...

- Ah, chegou o acarajé! O acarajé dessa baiana é uma beleza, é um dos melhores que eu já provei.

- Eu sei, eu conheço essa baiana desde menino.

- Ah, sim, claro. Com pimenta ou sem pimenta?
- Não, obrigado, eu detesto comer quando estou bebendo. Aliás, eu...
- Abará então? Hum, esse abará...

- Eu...
- Vou direto ao assunto, não quero tomar seu tempo. Para onde é que eu posso mandar uns originais que eu queria que você lesse? São 29 peças curtas, que eu prefiro não rotular, são pedaços de minha vida, de minha sensibilidade. Alguns você poderia chamar de contos. Não sei se você conhece aquela frase de Edgard de Andrade que diz que o conto é tudo aquilo que se chama de conto, conhece essa frase?

- Eu...

- Pois é, mas eu não quis chamar de contos, preferí não dar nome, chega de rótulos, de fórmulas, de coisas preestabelecidas, precisamos inovar a literatura, você não acha? Agora, se depois que você ler você achar que eu devo dizer que são contos, você é que sabe, você é que vai fazer o prefácio, não sou eu.

- Eu vou fazer o prefácio?

- Eu já tinha dito à Madalena e a Walter Augusto...Walter Augusto é meu cunhado, casado aqui com Madalena:eu vou lá conversar com ele e vou ser logo sincero, vou botar as cartas na mesa. Se eu quero o prefácio, pra que ficar enrolando, é ou não é? Madalena, me dê a caneta aí, para eu tomar nota do endereço dele para mandar os originais. Eu moro aqui na Bahia mesmo, isso chega rápido pelo correio, amanhã mesmo eu mando, deve estar aqui dois ou três dias depois, quer dizer, dá para esse prefácio estar pronto daqui para o outro domingo. Mas você não precisa ter o trabalho de me mandar o prefácio e me devolver os originais, eu mesmo venho aqui pegar tudo no próximo fim de semana e assim a gente aproveita para bater outro papo, depois que discutir o prefácio.

Discutir o prefácio? Eu...
- Agora está na hora de uma cervejinha. Dê cá o seu copo aí que eu vou mandar lavar, que agora a gente vai numa lourinha estupidamente gelada que eu...
- Olhe aqui, meu amigo, eu não vou fazer prefácio nenhum, não quero discutir nada com o senhor, não suporto mesa atulhada de caranguejo, folha de banana, farelo de acarajé, resto de vatapá e essa tralha toda aí e, mais do que tudo, não quero nem vou tomar cerveja nenhuma, largue meu copo aí, por favor.

- Mas minha intenção...

- O senhor vai me dar licença, eu vou embora.

- E o endereço?

- Que endereço, rapaz, eu vou lá lhe dar endereço nenhum ?

- É isso que acontece. Madalena, o sujeito tem um sucessozinho, vira medalhão e aí pisa nos outros! Pode ir, pode ir, eu saberei vencer sozinho! Você já viu que indelicadeza, Madalena, ele age como se tivesse o rei na barriga, não sei o que ele está pensando que é, ainda se fosse um escritor importante mesmo, agora um cara desses que ninguém sabe quem é e...


João Ubaldo Ribeiro, é autor de "Sargento Getúlio", "Viva o povo brasileiro", " A casa dos budas ditosos", "O sorriso do lagarto", entre outros. Nasceu em Itaparica(BA)

Fotos: skyscrapercity

06/05/2011

Pirata

"Calais" - William Turner

Sou o único homem a bordo do meu barco

Os outros são mastros que não falam,

tigres e ursos que amarrei aos remos,

e o meu desprezo reina sobre o mar.


Gosto de uivar no vento com os mastros

e de me abrir na brisa com as velas.

E há momentos que são quase esquecimento

numa doçura imensa de regresso.


A minha pátria é onde o vento passa.

A minha amada é onde os roseirais dão flor,

o meu desejo é o rastro que ficou das aves,

e nunca acordo deste sonho e nunca durmo.


Sophia de Mello Breyner Andresen

04/05/2011

Guerra



Tanto é o sangue

que os rios desistem de seu ritmo,

e o oceano delira e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue

que até a lua se levanta horrível,

e erra nos lugares serenos,

sonâmbula de auréolas rubras,

com o fogo do inferno em suas madeixas.


Tanta é a morte

que nem os rostos se conhecem, lado a lado,

e os pedaços de corpos estão por aí

como tábuas sem uso.


Oh, os dedos com alianças perdidas na lama...

Os olhos que já não pestanejam com a poeira...

As bocas de recados perdidos...

O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...


Tanta é a morte

que só as almas formariam colunas,

as almas desprendidas...

- e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas

e os cadáveres ainda armados

e a terra com suas flores ardendo,

e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,

e este mar desvairado de incêndios e náufragos,

e a lua alucinada de seu testemunho,

e nós e vós, imunes,

chorando, apenas, sobre fotografias,

- tudo é um natural armar e desarmar de andaimes

entre tempos vagarosos,

sonhando arquiteturas.


Em "Mar absoluto" - Cecília Meireles, Rio de Janeiro (1901-1964)

03/05/2011

Sobre um poema

Saturno devorando seus filhos, de Vic Muniz

Um poema nasce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem plavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo.

Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

às raízes minúsculas do sol.

Fora os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.

Embaixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


Herberto Helder (Luís Bernardes de Oliveira) - Funchal, Ilha da Madeira (1930- )

02/05/2011

Da ocupação do escritor

Jonathan Wolstenholme




O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é lápis e papel. Eu nunca soube que algo de bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. Está ocupado demais, escrevendo alguma coisa.


William Faulkner (1897-1962) New Albany, Mississipi. Autor de "O som e a fúria", "Enquanto agonizo", "Luz em agosto", entre outros.

01/05/2011

Ernesto Sábato

Auto-retrato



Um bom escritor expressa grandes coisas com pequenas palavras; inversamente o mal escritor, diz coisas insignificantes com palavras grandiosas.

Ser original é de certo modo expor a mediocridade dos demais.

Um criador é um homem que encontra em algo "perfeitamente" conhecido aspectos desconhecidos. Mas, é sobretudo, um exagerado.

O artista deve ser uma mescla de criança, homem e mulher.

A vida é tão curta e o ofício de viver tão difícil, que quando alguém começa a aprendê-lo, já tem que morrer.



O romancista, ensaísta e artista plástico Ernesto Sábato nasceu em Buenos Aires em 1911 e faleceu no dia 30 de abril de 2011, dois meses antes de completar 100 anos! Deixa-nos uma vasta obra de excelente qualidade da qual podemos citar "Sobre heróis e tumbas" (considerado o melhor romance argentino do século XX), "O escritor e seus fantasmas", "O túnel", "Nós e o universo". Foi ganhador do Prêmio Cervantes de Literatura, em 1984.