DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/07/2011

Música





A Pedro Nava


Uma coisa triste no fundo da sala. Me disseram que era Chopin. A mulher de braços redondos que nem coxas martelava na dentadura dura sob o lustre complacente. Eu considerei as contas que era preciso pagar, os passos que era preciso dar, as dificuldades...

Enquadrei o Chopin na minha tristeza e na dentadura amarela e preta meus cuidados voaran como borboletas.


Carlos Drummond de Andrade, em Alguma Poesia - Edit. Nova Aguilar, 1977.

28/07/2011

Poesia angolana




Herança de morte



Lírios em mãos de carrascos

Pombal à porta de ladrões

Filho de mulher à boca do lixo

Feridas gangrenadas sobre pontes quebradas

Assim construímos África nos cursos de herança e morte

Quando a crosta romper os beiços da terra

O vento ditará a sentença aos deserdados

Um feixe de luz constante na paginação da história

Cada ser um dever e um direito

Na voz ferida todos os abismos deglutidos pela esperança.


Amélia Dalomba, Cabinda (Angola), 1961

Tela de Eleutério Sanches, pintor angolano de Luanda

26/07/2011

Sobre a brevidade da vida...





Sempre que me ponho a pensar sobre a curta existência que nos é permitida viver, sou levada a refletir sobre o que deixaram escrito os homens da Antiguidade. E a sensação que tenho é a de que depois deles não temos feito muitos avanços em direção a um crescimento de nossas mentalidades. Como dizia Sêneca, há cerca de dois mil anos atrás, usamos de mil maneiras para prolongar a vida e desvencilhar-se de mil futilidades que a perturbam, sem no entanto, enriquecê-la. –
“A maior parte dos mortais lamenta a maldade da Natureza, porque já nascem com a perspectiva de uma curta existência e porque os anos que lhe são dados transcorrem rápida e velozmente. De modo que, com exceção de uns poucos, para os demais, em pleno esplendor da vida é que justamente está o abandono.”
A morte da cantora inglesa Amy Winehouse, ocorrida recentemente, no auge de sua carreira musical e de sua juventude, provocou-me indagações sobre o porquê de uma vida tão meteórica. Dela e de várias outras estrelas do universo artístico, como Janis Joplin, Elis Regina, Jimmy Hendrix e tantos outros.Hipócrates, considerado o pai da Medicina, dizia que

“A vida é curta, a arte é longa. A ocasião, fugidia. A esperança,falaz. E o julgamento, difícil.”
Sêneca nos dizia também que “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas.”

Dinheiro,sucesso, e fama,quando chegam juntos, geralmente provocam estragos em muitas pessoas, principalmente quando ainda se é muito jovem e sem uma bagagem emocional sólida. Há o desejo de alcançar os “degraus da fama" sem estar preparado para empreender a subida. E entre esses “degraus” existe o assédio dos fãs, o compromisso com empresários inescrupulosos, sempre exigindo mais, as oportunidades para consumir drogas as mais variadas possíveis, e o cerco vai se fechando imperceptivelmente... Sem contar com a possibilidade de virem à tona sentimentos de onipotência, de arrogância, vaidades, e por que não dizer, o desejo de imortalidade! Muitos até querem ir-se embora justamente no auge de suas carreiras, para que perpetuem as suas imagens per ommina secculum...Como poderemos saber? Quem somos nós para julgarmos?


Imagem: Vida e Morte, de Gustave Klimt

25/07/2011

Vida toda linguagem







Vida toda linguagem,


frase perfeita sempre, talvez verso,


geralmente sem qualquer adjetivo,


coluna sem ornamento, geralmente partida.


Vida toda linguagem,


há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome


aqui, alí, assegurando a perfeição


eterna do período, talvez verso.


Vida toda linguagem,


feto sugando em língua compassiva


o sangue que criança espalhará - oh metáfora ativa!


leite jorrado em fonte adolescente,


sêmen de homens maduros, verbo, verbo.


Vida toda linguagem,


bem o conhecem velhos que repetem,


contra negras janelas, cintilantes imagens


que lhes estrelam turvas trajetórias.


Vida toda linguagem -


como todos sabemos


conjugar esses verbos, nomear


esses nomes


amar, fazer, destruir,


homem, mulher, e besta, diabo e anjo


e deus talvez, e nada.


Vida toda linguagem,


vida sempre perfeita,


imperfeitos somente os vocábulos mortos


com que um homem jovem, nos terraços


do inverno, contra a chuva,


tenta fazê-la eterna - como se lhe faltasse


outra, imortal sintaxe


à vida que é perfeita


língua


eterna.



Mário Faustino, jornalista e poeta, nasceu em Teresina(PI) em 1930 e faleceu em 1962, em acidente aéreo no Perú.

Foto: José Albano

Imagem do cabeçalho: Lalla Essayadi, artista plástica marroquina.

22/07/2011

El poeta declara su nombradía



El ciclo del cielo mide mi gloria,

las bibliotecas del Oriente se disputan mis versos,

los emires me buscan para llenarme de oro la boca,

los ângeles ya saben de memoria mi último zéjel.

Mis instrumentos de trabajo son la humillación

y la angustia;

ojalá yo hubiera nacido muerto.


(Del Divãn de Abulcásin el Hadramí, siglo XII)




O poeta declara seu renome


O círculo do céu mede minha glória,

as bibliotecas do Oriente disputam os meus versos,

os emires me procuram para encher-me de ouro a boca,

os anjos já sabem de memória meu último jézel.

Meus instrumentos de trabalho são a humilhação

e a angústia;

quem me dera eu tivesse nascido morto.



( Em Divã de Abulcásin o Hadrami, século XII)

Imagem do alto: "Cabeça de Medusa", de Michelangelo Merisi, de Caravaggio

20/07/2011

Fábula sem moral






Um homem vendia gritos e palavras e ía bem, embora encontrasse muita gente que discutia os preços e pedia abatimento. O homem concordava quase sempre, e assim pode vender muitos gritos de vendedores ambulantes, alguns suspiros que lhe foram comprados por senhores pessimistas e palavras para lemas, slogans, lembretes e falsas ocorrências.

Afinal o homem percebeu que sua hora havia chegado e pediu audiência ao tiranete do país, que era parecido com todos os seus colegas e o recebeu cercado de generais e xícaras de café.

- Venho vender-lhe suas últimas palavras - disse o homem. - São muito importantes porque nunca lhe vão ocorrer no momento e em compensação lhe convém dizê-las no duro transe para configurar facilmente um destino histórico retrospectivo.

- Traduza o que ele está dizendo - ordenou o tiranete a seu intérprete.

- Ele fala argentino, Excelência.

- O senhor entendeu muito bem - disse o homem. - Repito que venho para vender-lhe suas últimas palavras.

O tiranete pôs-se de pé como é de praxe nessas circunstâncias e reprimindo um tremor mandou que prendessem o homem e o metessem nos calabouços especiais que existem sempre nesses ambientes de governo.

- É uma pena - disse o homem enquanto o levavam. - Na realidade o senhor desejará pronunciar suas últimas palavras quando chegar o momento, e precisará dizê-las para configurar facilmente um destino histórico retrospectivo. O que eu ía vender-lhe é o que o senhor quererá dizer, de modo que não há fraude. Mas como o senhor não aceita o negócio, como não vai aprender essas palavras por antecipação, quando chegar o momento em que elas quiserem brotar pela primeira vez, naturalmente o senhor não poderá dizê-las.

- Por que não poderei dizê-las, se são as que eu quererei dizer? - perguntou o tiranete, já diante de outra xícara de café.

- Porque o medo não lhe permitirá - disse tristemente o homem. - Como o senhor estará com uma corda no pescoço, de camisa e tremendo de terror e frio, os dentes se entrechocarão e não conseguirá articular uma palavra. O carrasco e os assistentes, entre os quais estarão alguns destes senhores, esperarão por decoro, alguns minutos, mas quando brotar de sua boca somente um gemido entrecortado de soluços e súplicas de perdão (porque isso sim o senhor articulará sem esforço) ficarão impacientes e o enforcarão.

Muito indignados, os presentes e em especial os generais cercaram o tiranete para pedir-lhe que mandasse fuzilar imediatamente o homem. Mas o tiranete, que estava-pálido-como-a-morte, expulsou-os aos empurrões e trancou-se com o homem para comprar-lhe suas últimas palavras.

Enquanto isso, os generais e ministros, humilhadíssimos pelo tratamento recebido, prepararam uma insurreição e na manhã seguinte prenderam o tiranete quando ele comia uvas em seu caramanchão preferido. Para que ele não pudesse proferir suas últimas palavras, mataram-no alí mesmo, com um tiro. Depois, puseram-se a procurar o homem que desaparecera do palácio do governo, e não tardaram em encontrá-lo, pois perambulava no mercado, vendendo pregões aos saltimbancos. Metendo-o num carro de polícia, conduziram-no à fortaleza e torturaram-no para que revelasse quais poderiam ter sido as últim as palavras do tiranete. Como não conseguiram arrancar-lhe a confissão, mataram-no a pontapés.

Os vendedores que haviam comprado gritos continuaram apregoando-os pelas esquinas, e um desses gritos serviu depois como contra-senha da contra-revolução que acabou com os generais e os ministros. Alguns deles, antes de morrer, pensaram confusamente que na realidade tudo aquilo tinha sido uma infame corrente de equívocos, e que as palavras e os gritos eram coisas que, a rigor, se pode vender mas não comprar, embora pareça absurdo.

E todos foram apodrecendo, o tiranete, o homem e os generais e ministros, mas os gritos ressoavam de vez em quando pelas esquinas.



Júlio Cortázar, em Histórias de cronópios e de famas.

19/07/2011

Para quem gosta de ler...






Selecionei trechos de obras de alguns autores objetivando aguçar a sua memória, a sua curiosidade e o seu gosto pela leitura. Será que você topa esse desafio? Você poderá responder (ou não!), através de seu comentário. Vamos lá?



l - (...) O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

2 - ...e não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida (...)


3 - A camisa havia sido remendada tantas vezes que mais se assemelhava a uma vela, e os remendos, sob a ação do sol, tinham-se esbatido em diversos tons. A cabeça do velho era muito velha.


4 - Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. O Leonardo, fazendo-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era maganão.


5 - O destino do rei seria o de morrer vítima do filho que nascesse de nosso casamento. No entanto, - todo o mundo sabe e garante, - Laio pereceu assassinado por salteadores estrangeiros, numa encruzilhada de três caminhos.


6 - Como a miséria nas classes baixas é sempre maior que o espírito da fraternidade das classes altas, tudo era distribuído antes mesmo de ser recebido; era como água em terra seca: ele gostava de receber dinheiro, mas sempre estava precisando de mais.


7 - O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não conseguí recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.



- Joaquim Maria Machado de Assis, em Dom Casmurro

- Sófocles, em Édipo Rei

- Manuel Antonio de Almeida, em Memórias de um sargento de milícias

- Victor Hugo, em Os Miseráveis

- João Guimarães Rosa, em Famigerado - Primeiras Estórias

- Ernest Hemingway, em O velho e o mar

- João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina

18/07/2011

Mandela, o mestre do seu destino!

Torre de Soweto, África do Sul



De dentro da noite que me cobre,

preta como a cova, de ponta a ponta,

eu agradeço a quaisquer deuses que sejam,

pela minha alma inconquistável.

Na cruel guerra da situação,

não estremecí, nem gritei em voz alta

sob a pancada do acaso.

Minha cabeça está ensanguentada,

mas não curvada.

Além deste lugar de ira e lágrimas

e apesar da ameaça dos anos,

encontro-me e me encontrarei destemido.

Não importa quão estreito o portal,

quão carregada de punições a lista,

sou o mestre do meu destino,

Sou o capitão da minha alma.


Hoje Nelson Mandela completou 93 anos de luta, de coragem, despojamento, e amor pelo seu povo! Salve, Mandela, axé e muita saúde!!!

16/07/2011

O dilema do poeta...

Gustave Caillebotte




Os poetas (cf. artistas) estão próximos de necromontes, fazendo esforços para ouvir os mortos cantarem. Esses mortos poderosos são as Sereias, mas não cantam para castrar, pois a morte faz amizade com todo poeta (cf. artista). Poesia, o duplo dilema da fantasia de lutar com os mortos poderosos, podendo se definir qualquer poema como o desvio de uma possível morte, pois o poeta, em sua elevação daemônica, adquire poder para uma energia contra si mesmo, e consegue, a um custo terrível, sua mais nítida vitória na luta com os mortos poderosos - o protesto da mente criativa contra a tirania do tempo.




Harold Bloom, escritor, ensaísta e crítico literário.


Nova York (1930- )

14/07/2011

Beleza pura !!!

Esse belíssimo fenômeno óptico que infelizmente não podemos visualizar aqui no hemisfério sul, só acontece nos céus noturnos das regiões polares e é chamado de aurora polar. É provocado pelo choque entre partículas de vento solar, proveniente da corona solar(elétrons, prótons e neutrinos) e a poeira espacial encontrada na via láctea e na alta atmosfera da Terra. No hemisfério norte é também conhecida como aurora boreal, nome dado por Galileu Galilei em 1619, em homenagem à deusa romana do amanhecer Aurora e ao seu filho Bóreas, representante dos ventos do norte. Normalmente ocorre nos meses setembro/outubro e março/abril. No hemisfério sul foi batizada por James Cook de aurora austral. Também pode ser observada em outros planetas do sistema solar como Júpiter, Saturno, Marte e Vênus e já foi provocada artificialmente através de explosões nucleares e em laboratórios.

Em geral, o efeito luminoso é dominado pela emissão de átomos de oxigênio em altas camadas atmosféricas (200km de altitude), produzindo a tonalidade verde. Quando ocorre uma forte tempestade, as camadas mais baixas da atmosfera são atingidas pelo vento solar (100km de altitude), produzindo a cor vermelho escuro, provocada por átomos de nitrogênio.

Na Escandinávia e na Islândia o fenômeno da aurora boreal é bastante comum.


corona da aurora boreal

aurora boreal Nova Zelândia



aurora boreal na Suécia


aurora boreal - estação espacial internacional


aurora boreal vista de estação espacial


aurora boreal planeta Júpiter


aurora austral pelo satélite da Nasa (2005)


Fonte: wikipédia

13/07/2011

A banca do distinto




Não fala com pobre,

não dá mão a preto,

não carrega embrulho!

Pra que tanta pose, doutor?

Pra que esse orgulho?

A bruxa, que é cega, esbarra na gente

e a vida estanca!

O infarto te pega, doutor!

e acaba essa banca...

A vaidade é assim, põe o bobo no alto

e retira a escada, mas fica por perto,

esperando sentada.

NegritoMais cedo ou mais tarde

ele acaba no chão...

Mais alto o coqueiro,

maior é o tombo do coco,

afinal todo mundo é igual

quando a vida termina

com terra por cima e na horizontal!!


Billy Blanco, (William Blanco Abrunhosa Trindade) -

Belém(PA

12/07/2011

Crimes acidentais: a destruição de um continente

Koren, EtiópiaFoto: Sebastião Salgado

Em meados da década de 1880 uma força expedicionária italiana fez uma de suas periódicas incursões no nordeste da África. Sua permanência foi curta, mas teve conseqüências catastróficas. Os italianos trouxeram consigo cabeças de gado para sua alimentação; e essas cabeças de gado por sua vez trouxeram e legaram à África a Rinderpest, ou peste do gado. A doença se disseminou de forma avassaladora, primeiro pelo chamado Chifre da África e rapidamente por todo o continente. O morticínio é até hoje incalculável.

Todos sabem que o continente africano é o que paga o maior preço pela herança colonial e pela desorganização da produção agrícola provocada pelos complexos agroindustriais das potências européias.De acordo com o Informe sobre Metas do Desenvolvimento do Milênio, publicado em 2010, "entre os 36 países com índices de mortalidade infantil superiores a cem por cada cem mil habitantes, 34 estão na África Subsaariana

O legado deixado pelo colonialismo europeu foi extremamente pesado não apenas no que se refere à destruição da cultura tradicional e das reservas de fertilização do solo ou equilíbrio natural. Mas há histórias antigas que devem ser lembradas para que fiquem evidentes as múltiplas estratégias de dominação engendradas através da destruição ambiental. Na África, elas se entrelaçaram à ausência de industrialização, crescimento demográfico acelerado e deterioração das relações de trocas externas, acompanhadas não raro de bloqueios e manobras desestabilizadoras. A combinação levou o continente ao limiar de uma catástrofe alimentar sem precedentes.

Os fatos que passamos a narrar mostram a centralidade da questão ecológica e, obviamente, sua radicalidade ética. Experiências inovadoras, alternativas aos sistemas produtivos implantados pelas potências européias e, posteriormente pelo imperialismo estadunidense, devem ser implementadas. Mas se não há outro método senão o do erro e do acerto, a experiência acumulada já nos permite evitar a devastação provocada por crimes " acidentais". Relembrar é fundamental para a ação política.

No final do século 19 a África já tinha sido duramente atingida por séculos de tráfico de escravos e exploração de seus recursos naturais, notadamente os minerais. Mesmo assim, ainda existiam no continente sociedades prósperas e vigorosas, econômica e culturalmente.
Uma única e aparentemente irrelevante intervenção européia mudou esse quadro de forma abrupta, devastadora e irreversível.

Em meados da década de 1880 uma força expedicionária italiana fez uma de suas periódicas incursões no nordeste da África. Sua permanência foi curta, mas teve conseqüências catastróficas. Os italianos trouxeram consigo cabeças de gado para sua alimentação; e essas cabeças de gado por sua vez trouxeram e legaram à África a Rinderpest, ou peste do gado.

A Rinderpest é uma moléstia infecciosa de ruminantes, altamente contagiosa e virulenta, causada por um vírus, Tortor bovis. O vírus tem um período de incubação curto, de três a cinco dias. Os primeiros sintomas da doença são lassitude e inapetência, acompanhadas de febre de mais de 40 graus. Seguem-se supurações oculares, nasais e bucais, diarréia, perda de massa corporal, desidratação e desinteria, e finalmente sobrevêem, após não mais de duas semanas, prostração, coma e morte.

Originária das estepes da Ásia, a Rinderpest chegou à Europa no rastro das invasões de povos como os mongóis. Após vários surtos epidêmicos, a doença se tornou endêmica em algumas regiões da Europa; e, como freqüentemente acontece com endemias, ocorreu um processo de seleção natural pelo qual os indivíduos naturalmente resistentes sobreviviam e se reproduziam, e seus descendentes, ou parte deles, possuíam imunidade parcial ou tolerância. Eram infectados mas não desenvolviam a doença, tornando-se assim portadores e transmissores assintomáticos.

Mas até então a Rinderpest era totalmente inexistente na África sub-saariana, possivelmente porque os camelos, os únicos animais a cruzar o deserto, não eram suscetíveis à moléstia. E portanto nenhuma espécie nativa era dotada de qualquer defesa imunológica contra a doença.

Sem a barreira protetora do deserto, a Rinderpest se disseminou de forma avassaladora, primeiro pelo chamado Chifre da África e rapidamente por todo o continente. Em 1887 a "peste do gado" surgiu na Eritréia, local da invasão italiana, e em menos de um ano havia se espalhado por toda a Etiópia. Dali seguiu dois caminhos. Para o oeste, através do Sudão e do Chade, e em cinco anos chegou ao Atlântico. Para o sul, através do Quênia e de Tanganica, e dali penetrando no centro do continente.

Antes do final do século 19 a epidemia tinha chegado à África do Sul, apesar das tentativas pelas autoridades das então ainda incipientes colônias inglesas ali já estabelecidas de impedir sua passagem erguendo uma barreira sanitária ao longo de 1.500 quilômetros, e havia dizimado quase todo o gado da região. E destruído, por onde passou, as sociedades nativas.

A doença não afeta seres humanos, mas aquelas sociedades tiveram suas bases destroçadas. Os pastores e criadores perderam seus rebanhos. Os agricultores ficaram privados dos animais de tração para seus arados e para as rodas de água que serviam para irrigar seus campos. E os caçadores viram desaparecer suas presas, pois a Rinderpest ataca indiscriminadamente espécies domésticas e selvagens.

O morticínio é até hoje incalculável. Pela fome, e pelas epidemias oportunistas que se instalaram aproveitando o quadro de subnutrição generalizada. E também pelo impacto psicológico. Tribos como os Masai, celebrados como prósperos criadores de gado e bravos guerreiros, viram toda sua estrutura social desabar da noite para o dia e se reduziram a pedintes, implorando por comida às caravanas que cruzavam seu território. Os Fulani, outra tribo antes rica e poderosa, perderam todo seu gado e, incapazes de aceitar o flagelo que os havia acometido, se auto-destruíram quase que à extinção matando suas próprias famílias e se suicidando em massa.

Para as potências coloniais européias a Rinderpest foi uma benção. Ao avançarem maciçamente sobre a África no final do século 19 e no começo do século 20 encontraram uma população empobrecida e assolada por doenças, drasticamente reduzida, em alguns casos a menos de 10% do que tinha sido uma ou duas décadas atrás, e incapaz de oferecer qualquer resistência significativa aos invasores. Poucas, se alguma, conquistas coloniais terão sido tão fáceis quanto a da África pós-Rinderpest.

Mas a peste do gado teve outra consequência: mudou a própria ecologia do continente. Até então, as grandes manadas que ocupavam as campinas africanas limitavam o crescimento da vegetação, tanto pelo pasto quanto por sua presença física. Com o desaparecimento dessas manadas, as planícies foram tomadas pelas gramíneas, que cresciam sem qualquer fator limitador, e a vegetação arbórea e arbustífera se espalhou por vastas áreas de florestas e cerrados.

Esse ambiente se mostrou propício à proliferação da mosca tsé-tsé, um grupo de insetos hematófagos do gênero Glossina que infesta tanto animais como seres humanos, e é o transmissor do parasita causador da trepanossomose conhecida como "doença do sono" (outra espécie de trepanossoma é causador da Doença de Chagas). A doença é caracterizada por febre e inflamação das glândulas linfáticas, seguidas, quando ocorre o comprometimento da medula espinhal e do cérebro, por profunda letargia (daí seu nome) e, numa alta proporção de casos, de morte.

De início a Rinderpest também afetou a mosca tsé-tsé negativamente, ao dizimar seus hospedeiros animais, domésticos e selvagens, e humanos. Mas a vegetação exuberante que passou a dominar as campinas forneceu o terreno ideal para que as moscas adultas depositassem suas larvas e assim procriassem em grande número, o que permitiu à tsé-tsé sobreviver. Quando a epidemia de Rinderpest cedeu, por falta de vítimas, as populações de animais selvagens, por não dependerem de humanos para sua subsistência, se recuperaram muito mais rápida e intensamente do que as de amimais domésticos e de humanos. E a mosca tsé-tsé pôde se espalhar pelos novos hospedeiros, livre de qualquer controle. Por sua vez, a infestação pela tsé-tsé e a doença de que é portadora impediram que os humanos e seu gado voltassem a ocupar as planícies como áreas de pasto. Nessas condições, a tsé-tsé passou a dominar o novo ambiente, incluindo o leste da África onde era inexistente, e regiões do sul do continente em que havia praticamente desaparecido.

A combinação de mudança ambiental e devastação colonial fez com que as sociedades já arrasadas pela peste do gado nunca pudessem se recuperar. Além disso, muitos dos conflitos tribais que hoje ocorrem são fruto não de rivalidades milenares, mas sim de disputas resultantes da Rinderpest, quer por comida no auge da epidemia quer pelas escassas áreas de pastoreio existentes no ambiente por ela criado, e agravadas pelas tensões geradas pelas fronteiras arbitrariamente riscadas no mapa pelas potências coloniais.

Ironicamente, uma outra iniciativa européia, esta bem intencionada, serviu para preservar as condições econômicas adversas. Os colonizadores supuseram, erroneamente, que o ambiente com o qual se depararam - vastas áreas de planícies cobertas por grama alta e ocupadas por animais selvagens, de cerrados e de florestas, todas infestadas pela mosca tsé-tsé e sem a presença do homem e de animais domésticos - era a "África primitiva"; e quando mais tarde surgiram os primeiros movimentos "conservacionistas" (alguns eivados de uma boa dose de hipocrisia) que levaram à criação dos parques nacionais e das reservas animais foi esse ambiente supostamente "primitivo" que se estabeleceu como modelo para a preservação, não raro com o beneplácito e a colaboração dos governos locais, desesperadamente necessitados das receitas em moeda forte provenientes do "turismo ecológico". Com isso, as áreas de "preservação" foram para sempre vedadas a qualquer atividade econômica, desprezando o fato de que, antes da Rinderpest, homem, gado e fauna selvagem dividiam equilibradamente o território, e de que esse equilíbrio era dinâmico, com ciclos de predominância dos diversos tipos de vegetação e formas de ocupação.

Isto criou ainda uma nova figura antes inexistente: o "poacher", ou caçador clandestino, tanto para obter alimento quanto para se apoderar, quase sempre para serem contrabandeados para países ricos, de despojos valiosos como chifres de rinoceronte ou patas de macacos. O "poacher" tornou-se, ao lado do ditador caricato, o grande vilão da África pós-colonial, a ser bravamente combatido pelo destemido "defensor da natureza", sejam naturalistas (muitos deles de fato idealistas e dedicados) sejam heróis de ficção - infalivelmente caucasianos. As "vozes d'África", como sempre, não se fazem ouvir.

A África que nos é mostrada hoje, nos documentários sobre a "África selvagem" e nos noticiários sobre as "guerras tribais", na ficção popular e nas biografias romanceadas "baseadas em fatos reais", é portanto em mais de um sentido uma artificialidade criada pela intervenção européia, direta e indireta, na ecologia do continente, incluída sua ecologia social. Um embuste reeditado pelos " Nat Geos" que se multiplicam nas telas.


OBS: O Chifre da África é constituído dos seguintes países: Somália, Etiópia, Djibouti e Eritreia.

Gilson Caroni Filho (jornalista) e Carlos Eduardo Alcântara Martins (economista). Artigo extraído de http://agenciacartamaior/

10/07/2011

Porque o mundo gira...!!!



Because


because the world is round

it turns me on

because the world is round...

because the wind is high

it blows my mind

because the wind is high...

love is old, love is new

love is all, love is you

because the sky is blue,

it makes me cry

because the sky is blue...!


The Beatles

06/07/2011

Sobre pessoas




A mãe, as professoras

e os dias de um escritor



O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois, quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas - bê-a-bá, bê-e-bé... - e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases, Ivo-viu-a-uva...

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus.

Quando foi para a escola, num mês de março, já sabia ler a cartilha, o que deixara a professora Serafina muito feliz. Então chegou o dia 7 de setembro. Escolhido para recitar um poema patriótico em cima de um palanque, viu a praça antes empoeirada e deserta apinhar-se de gente. Pensou que ía cair, tal era a tremedeira nas pernas. Ainda assim, soltou a sua voz gasguita: "Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que a luz do sol encerra/ as divinas promessas de esperança"...

O público reagiu com lágrimas, num emocionado preito a uma criança capaz de memorizar todas aquelas palavras bonitas. Dalí por diante, se lhe perguntassem o que queria ser quando crescesse, já tinha a resposta: Castro Alves.

Aí chegou outra professora. "Leve os meninos", disse-lhe dona Serafina. Triste notícia. Que graça teria uma escola sem meninas? A recém-chegada chamava-se Teresa, que trazia uma novidade: um livro para ser lido em voz alta, tão encardido e probezinho quanto aquele lugar de lavradores. Vinha a ser uma antologia de contos, crônicas e poesias. Para começar, ao personagem dessa história coube um texto de José de Alencar, que nunca esqueceria: "Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba". Imagine o efeito disso. Ele não fazia a menor ideia de como era o mar.

Também não tinha familiaridade com a chuva, o tema de uma redação, dificílimo, para quem vivia no polígono das secas. Asas à imaginação. Seu desempenho na escrita ganhou fama, levando-o a ser solicitado à realização de serviços mais desafiadores, por exemplo, as cartas dos apaixonados do lugar - e suas respostas. E as das chorosas mulheres dos migrantes. Essas eram de cortar o coração.

E assim iria se fazendo um escritor nascido na roça. As leituras o levaram a trocar a enxada pela caneta, com a qual vivia a cavar o seu sustento pela vida afora. E sempre a olhar as letras com o mesmo encanto com que as viu pela primeira vez.


Crônica de Antonio Torres

03/07/2011

..."a morder-nos na carne..."



Pusemos tanto azul nessa distância

ancorada em incerta claridade

e ficamos nas paredes do vento

a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves

que secam folhas nas árvores dos dedos

E ficamos ungidos nas estátuas

a morder-nos na carne de um segredo.



Em "O livro dos amantes", de Natália Correa, São Miguel, Portugal - 1923-1993.