DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/09/2011

Fecundação

Foto: Henri Cartier-Bresson

Teus olhos me olham

longamente

imperiosamente

De dentro deles teu amor me espera.

Teus olhos me olham numa tortura

de alma que quer ser corpo,

de criação que anseia ser criatura.

Tua mão contém a minha

de momento a momento;

é uma ave aflita

meu pensamento

na tua mão.

Nada me dizes,

porém entra-me a carne

a persuasão de que teus dedos

criam raízes

na minha mão.

Teu olhar abre os braços,

de longe,

à forma inquieta de meu ser,

abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar

penetrações supremas

e sinto, por sentí-lo, tal prazer,

há nos meus poros tal palpitação,

que me vem a ilusão

de que se vai abrir

todo o meu corpo

em poemas.


Gilka Machado, (1893-1980) escrevia poemas eróticos e sensuais desafiando a sociedade moralista e conservadora da época, despertando críticas ferrenhas até dos círculos intelectuais, notadamente dos modernistas, como Mário de Andrade, que chegou a chamá-la de "escandalosa" (!?). Apesar de ser polemizada tornou-se bastante popular e produziu uma extensa obra poética colocando a mulher numa posição ativa em meio ao universo machista da época. São dela Cristais Partidos (1915), Poesias (1915), Estados de Alma (1917), Meu glorioso pecado (1918), Mulher Nua (1922), entre outros.

27/09/2011

A natureza distribuída do pensamento



Sir Charles Sherrington (Londres, 1859-1952) foi um dos primeiros neurocientistas a reconhecer a natureza distribuída do pensamento ao demonstrar que funções neurológicas básicas, como os arcos reflexos espinhais, dependem da cooperação contínua de múltiplas estruturas periféricas e centrais. Ao definir que essa colaboração entre estruturas neurais caractrizava um sistema integrado, ele ajudou a lançar a área de pesquisa conhecida como neurociência de sistemas. Curiosamente, apesar da magnitude impressionante de seu trabalho experimental, Sherrington também se dedicava à literatura, como forma de expressar suas teorias sobre a mente humana. No livro O homem em sua natureza, ele usou de uma prosa quase poética para descrever sua intuição sobre o funcionamento íntimo do cérebro:

"O cérebro está acordando e com ele a mente retorna. Como se toda a Via Láctea entrasse, subitamente, numa dança cósmica, a massa de tecido neural se transforma num tear encantado no qual milhões de lançadeiras tecem, instantaneamente, um padrão etéreo, um padrão sempre cheio de significado, mas nunca definitivo; uma harmonia de padrões, sempre em fluxo."

Em Muito além do nosso eu, de Miguel Nicolelis, nascido em São Paulo, formado em medicina e doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente

está à frente de um grande laboratório na Universidade de Duke (EUA).

25/09/2011

Não sou eu que gosto de nascer...


A loucura, longe de ser uma anomalia, é uma condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela, e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela, e ela ser pequena, é ser desiludido. Ter consciência dela, e ela ser grande, é ser gênio.


Fernando Pessoa


É dito: pelo chão você não pode ficar,


porque lugar de cabeça é na cabeça.


Lugar de corpo é no corpo.


Pelas paredes voê também não pode.


Pelas camas também você não vai poder ficar.


Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar,


porque lugar da cabeça é na cabeça.


Lugar de corpo é no corpo.


*****


Não sou eu que gosto de nascer


Eles que me botam para nascer todo dia


E sempre que eu morro me resuscitam


Me encarnam me desencarnam me reencarnam.


Me formam em menos de um segundo.


Se eu sumir desaparecer eles me procuram


onde eu estiver...


Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto


Ou pra cabeça deles e pro corpo deles.



*****


Eu sobreviví do nada, do nada.


Eu não existia.


Não tinha uma existência


Não tinha uma matéria.


Comecei existir com quinhentos milhões


e quinhentos mil anos.


Logo de uma vez, já velha.


Eu não nascí criança, nascí já velha


Depois é que eu virei criança.


E agora continuei velha,


Me transformei novamente numa velha.


Voltei ao que eu era, uma velha.


*****


Não deu tempo.


Eu estava tomando claridade e luz


Quando a luz apagou


A claridade apagou


Tudo ficou nas trevas


Na madrugada mundial


Sem luz.


Não trabalho com a inteligência


Nem com o pensamento


Mas também não uso a ignorância.



Stela do Patrocínio, era uma das internas da Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira, no bairro da Taquara, em Jacarepaguá(RJ). Nasceu em 1941 e a partir de 1962 alí passou sua vida até falecer em 1977. Deixou um livro publicado Reino dos dos bichos e dos animais é o meu nome, que chegou a concorrer ao Prêmio Jabutí, em 2002, ficando como finalista.

22/09/2011

Uma "caçoada" de Mário de Andrade





"Prazeres e dores prendem a alma no corpo como um prego. Tornam-na corporal. Consequentemente é impossível para ela chegar pura nos infernos."

( Platão - 427 a.C - 347 a.C.)




Meu corpo profundo ante a manhã Sol

A vida carnaval...

Amigos

Amores

Risadas

Os piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos

de artistas de cinema,

desses que vêm nos maços de cigarros.

Me sinto a Assunção de Murillo!

Já estou livre da dor...

Mas todo vibro da alegria de viver.

Eis porque minha alma é impura.


Após escrever esse poema Mário de Andrade teria sido vítima de pilhérias, e para "caçoar" dos que o criticaram, escreveu então esse outro a partir da epígrafe de Platão (acima)


PLATÃO

Platão! Por te seguir como eu quisera

Da alegria e da dor me libertando

Ser puro, igual aos deuses que a Quimera

Andou além da vida arquitetando!

Mas como não gozar alegre quando

Brilha esta alva manhã de primavera

- Mulher sensual que junto a mim passando

Meu desejo de gozos exaspera!

A vida é bela! Inúteis as teorias!

Mil vezes a nudeza em que resplendo

A clâmide da ciência, austera e calma!

E caminho entre aromas e harmonias

Amaldiçoando os sábios, bendizendo

A divina impureza de minha alma.


Mário de Andrade, São Paulo(SP) - 1893-1945

21/09/2011

Das árvores, poema




As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco

se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,

e deles nascem folhas, e as folhas, multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,

e então crescem as flores, e as flores produzem frutos

e os frutos dão sementes,

e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.

Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.

Sós.

De dia e de noite.

Sempre sós.


Os animais são outra coisa.

Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,

fazem amor e ódio, e vão à vida

como se nada fossem.


As árvores não.

Solitárias, as árvores,

exauram a terra e o sol silenciosamente.

Não pensam, não suspiram, não se queixam.

Estendem os braços como se implorassem;

com o vento soltam ais como se suspirassem;

e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.

Nas planícies, nos montes, nas florestas,

a crescer e a florir sem consciência.


Virtude vegetal viver a sós

e entretanto dar flores.


Antonio Gedeão (Rômulo Vasco da Gama de Carvalho)

Lisboa - 1906-1977

20/09/2011

A origem do mundo...!?



A versão feminina para a origem da vida

Um dia, no jardim do Éden, Eva disse a Deus:
- Deus, tenho um problema!
- Qual é o teu problema, Eva?
- Deus, sei que me criaste e me deste este maravilhoso jardim e todos estes
maravilhosos animais e esta serpente tão graciosa, mas... não sou feliz.
- Porquê, Eva? - disse a voz lá de cima.
- Deus, estou sozinha e não aguento comer mais maçãs.
- Bem, Eva, nesse caso, tenho uma solução. Criarei um homem para ti...
- O que é um homem, Deus?
- Um homem será uma criatura defeituosa, com muitos atributos negativos.
Mentiroso, arrogante, vaidoso; em resumo, fará da tua vida um inferno. Mas será maior, mais rápido, e vai caçar e matar animais para ti, porém, para que não te queixes, criá-lo-ei com o objetivo de satisfazer as tuas necessidades físicas. Será patético e sentirá prazer em coisas infantis, como lutar e dar
pontapés numa bola. Não será muito inteligente e vai precisar do teu conselho
para pensar adequadamente.
- Parece ótimo - disse Eva com um sorriso irônico.
- Porém...
- Qual é o problema, Deus?
- Bem... irás tê-lo com uma condição.
- Qual, meu Deus?
- Como te disse, será orgulhoso, arrogante e egocêntrico... Assim terás
que deixar que ele acredite que eu o fiz primeiro.

OBS: recebí essa "anedota" por e-mail. Não sei qual o sexo de quem fez a versão !

18/09/2011

Um poema de ÂNGELO DE LIMA



Para-me de repente o pensamento.

Como que de repente refreado

Na doida correria em que levado

Ía em busca da paz, do esquecimento...

Para surpreso, escrutador atento,

Como para um cavalo alucinado

Ante um abismo súbito rasgado.

Para e fica e demora-se um momento.

Para e fica na doida correria...

Para à beira do abismo e se demora

E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...

Mas a espora da dor seu flanco estria

E ele galga e prossegue sob a espora.

Após dois anos de sua sua participação na revolução republicana de Portugal em 1891, Ângelo de Lima (Porto, 1872 - Lisboa, 1921) ficou internado no Hospital Psiquiátrico Conde Ferreira, na cidade do Porto, durante quatro anos. Após outros dois anos foi internado novamente, dessa vez em Lisboa, permanecendo no manicômio até a sua morte.



15/09/2011

Por um novo olhar sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário

Uma apresentação de Bispo do Rosário









"Vaso sanitário"






"Roda da fortuna"












Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba(SE), em 1909 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1989. Considerado louco por alguns e gênio por outros, era descendente de escravos africanos. Trabalhou durante algum tempo na marinha e posteriormente como empregado doméstico de uma tradicional família carioca, de onde saiu uma noite dizendo ir apresentar-se na Igreja da Candelária. Para lá não mais voltou, acabando por ser detido e fichado pela polícia como negro, sem documentos, e conduzido ao Hospício Pedro II (onde também foi internado Lima Barreto). Dalí foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, sob o dignóstico de "esquisofrênico-paranóide", permanecendo naquela instituição por mais de 50 anos, onde aliás, veio a falecer. Sua obra é constituída de 804 peças todas a partir de objetos que usava no seu dia-a-dia ou que encontrava na própria Colônia, ou ganhava de outros internos. São canecas, chapéus, peças musicais, de arquitetura, pandeiros, roda de bicicleta e até um batedor de ovos. Não têm data nem assinatura. Seu trabalho já participou da 46ª Bienal de Veneza, possui trabalhos expostos em Valência (Espanha) e a partir desse mês de setembro ganhará uma exposição individual em Lyon (França) e em Bruxelas (Bélgica).

Já foi comparado a Marcel Duchamp e a Van Gogh. Extraí um trecho de um artigo escrito por Alfredo Braga, em 2001, porque achei bastante interessante e elucidativo:

"Machado de Assis, o Shakespeare dos Trópicos.

Portinari, o Picasso de Brodovski.

Flávio de Carvalho, o Francis Picabia brasileiro.

Bispo do Rosário, o nosso Van Gogh.

É admirável que esse triste mecanismo de justificação da vida e da obra dos artistas nacionais, ainda pretenda ser uma forma de Elogio.
Mais do que uma aproximação razoável, percebe-se nesse provinciano jogo, um aflito gesto de compensação; e essas disparatadas comparações fazem parte do nosso dia-a-dia; haja vista para algumas longas elucubrações sobre arte e artistas, em cadernos especiais de jornais e revistas, e em certas monografias e teses universitárias.
Por outro lado, há alguns anos tenho reparado que quando algum crítico, historiador, ou "curador", vem falar de Arthur Bispo do Rosário, en passant, como quem não quer nada, inclui, sempre de viés, e sem se comprometer, alguma alusão à obra de Marcel Duchamp, mas nunca afirma ou nega coisa alguma.
É claro que a simples justaposição das fotografias da Roda da Fortuna, de Bispo do Rosário, e da Roda de Bicicleta, de Marcel Duchamp, não autoriza ninguém a teorizar sobre semelhanças, nem sobre coincidências significativas, ou arquétipos, ou inconsciente coletivo. Mas, talvez nas enormes distâncias entre esses dois artistas é que repouse uma esquisita proximidade que vai provocar, naqueles eruditos, o susto, e disparar o paralisante pudor acadêmico1.
É cada vez mais evidente que os temas, ou os assuntos das obras desses dois artistas, são os mesmos, como os Moinhos e os Trituradores, e mesmo quando os títulos aparentemente as afastam, a forma, ou o formato das obras, volta a aproximá-las; por exemplo: os Moldes Málicos, de Duchamp, e As Faixas e Cetros em Homenagem às Misses, ou os O.R.F.A., de Bispo do Rosário, ou A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo, ou A Cama de Romeu e Julieta.
Mas, de um outro modo, e como razoável explicação das exageradas coincidências, e dos temas e procedimentos recorrentes em ambos os artistas, o Prof. Luis Camilo Ozório2, neste caso, descrendo da possibilidade de uma matriz, ou fonte comum, como, por exemplo, a do inconsciente coletivo à maneira de Jung, ponderou que Arthur Bispo do Rosário apenas teria folheado alguma reportagem sobre Marcel Duchamp em revistas da época, e se impressionado, a ponto de incorporar aqueles motivos e posturas artísticas à sua obra em processo.
Agora já não é importante amealhar argumentos para sustentar uma ou outra hipótese: ambas são absolutamente prováveis, e apenas o prazer da polêmica faria pender para este ou para aquele lado a orientação dos raciocínios. Então, uma comparação entre os dois artistas não postula a justificação de Arthur Bispo do Rosário, mas procura outra compreensão não contaminada por simplificações decorrentes da sua condição de interno em um hospício para alienados; naquela época e naquela cidade, outras pessoas eventualmente estressadas por qualquer circunstância, naquelas condições socioeconômicas, estariam sujeitas ao mesmo diagnóstico e tratamento, mas dificilmente nos proporcionariam semelhante produção artística.
Arthur Bispo do Rosário não é "o nosso Duchamp" e muito menos "o nosso Van Gogh", mas olhando com atenção para a obra de Duchamp, vamos compreender melhor a de Bispo do Rosário, pois, apesar dos sotaques, ambos conversam no mesmo registro, falam do mesmo modo e dos mesmos assuntos.
A diferença de importância ou de qualidade entre as duas obras, só está na enorme diferença com que cada uma foi abordada e estudada.[...]"

13/09/2011

Tenho que falar...




Tenho que falar, não tendo nada a dizer, nada a não ser a palavra dos outros. Não sabendo falar, não querendo falar, tenho que falar. Ninguém me obriga a isso, não há ninguém, é um acidente, é um fato. Nada poderá jamais me dispensar disso, não há nada, nada a descobrir, nada que diminua o que falta dizer, tenho o mar a beber, então há um mar. Não ter sido bobo, é isso que terei tido de melhor, feito de melhor, ter sido bobo, querendo não ser, acreditando não ser, sabendo que era, não sendo bobo de não ser bobo. Pois uma coisa qualquer, isso não funciona, devia funcionar, mas não. É um suplício intricado, impossível de entender, de limitar, de sentir, de suportar, sim, insuportável também, sofro mal também, até isso também faço mal, como uma velha perua morrendo em pé, o dorso carregado de pintinhos, espreitada pelos ratos. Depressa a sequência. Nada de gritos sobretudo, urbanidade, saber morrer, enquanto os outros se divertem, ouço-os daqui, isso estala como espinhos, não, é impossível, sou eu que urro, longe, por trás da minha dissertação. Então nada de uma coisa qualquer. [...]


Samuel Beckett, em O inominável

11/09/2011

Poema para as Mãos Esquerda e Direita



A mão esquerda sente a água passar

A direita amarra nós

A direita dá pontos numa costura

A esquerda desliza na seda

A direita come

A esquerda escuta debaixo da mesa

A direita jura

A esquerda usa os anéis

A direita ganha, a esquerda perde

A esquerda segura as cartas

A esquerda toca acordes enquanto a direita

corre, corre para cima e para baixo

e quando a direita não pode dormir

e dá a volta ao mundo

em luta contra o tempo

a esquerda fica enterrada

Ah, mão esquerda, você é tão

tranquila

Você tem filhos, cachorro, amantes,

dívidas

É a direita que compra as guloseimas

muda a marcha

corre atrás de cargos elevados

põe na boca do bebê uma

colherzinha de prata

É a direita que segura a faca

para reduzir a pedacinhos a mão

esquerda

A mão esquerda serve

um cão cego

segurando em sua boca

a luva da mão direita

A faca baixa, retine

Na mão esquerda

é a única chance da direita


Marilyn Thompson, em Athlantic Monthly, 1975 - Desenhando com o

artista interior, de Betty Edwards.

10/09/2011

Anotações sobre um domingo e a memória de dois setembros




1. Dez anos depois de 2001, o dia onze de setembro cai num domingo. Naquele ano, caiu numa terça-feira.

De lá para cá o mundo nunca mais foi o mesmo, e com as ações desatadas por um fundamentalista iracundo chamado George W. Bush, tendo como justificativa as ações de outro fundamentalista de igual calibre chamado Osama Bin Laden, tudo mudou – para pior. Os Estados Unidos, o país mais bélico da história da humanidade, o país que necessita permanentemente viver em pânico, sentir-se ameaçado, e que quando não há ameaça logo inventa alguma, pois esse país se deu uma vez mais o luxo de invadir e avassalar ao seu bel prazer outros países, outros povos, destroçar outras culturas. Esparramar a paranóia do terror mundo afora, encarar alegremente a tortura, a sevícia e a humilhação como instrumentos lícitos para obter confissões.

2. Trinta e oito anos depois de 1973, o dia onze de setembro cai num domingo. Naquele ano, caiu numa terça-feira. Trágica coincidência.

De lá para cá a América Latina, que já padecia uma longa e persistente era de violência, mudou, e mudou em dois tempos. Num primeiro tempo, ao que já havia de mau em seu mapa somou-se a tragédia do Chile. E boa parte do pouco que havia sobrado de bom perdeu-se em labirintos tenebrosos, sonhos e esperanças viraram nuvens perdidas, caravanas de nômades buscaram algum oásis onde pernoitar pelas longas noites do exílio, e pairou um silêncio cúmplice ou culpado de quem não quis ver o que se passava nas masmorras da tortura e do esmagamento de parte da sua melhor juventude. Num outro tempo, em anos mais recentes, a América Latina soube se reconciliar com a democracia, a aceitar sua diversidade, a resgatar tempos perdidos ou roubados.

Amargas costumam ser as ironias da história, ao menos neste pedaço do mundo. Para que em 1973 os militares chilenos lançassem fogo e metralha sobre seu país, para que com um golpe cruel interrompessem a trajetória de um homem bom e digno chamado Salvador Allende, que preferiu acabar com a própria vida a ser humilhado por quem o traiu, foram essenciais o apoio e a intervenção dos Estados Unidos. Os mesmos Estados Unidos que, vinte e oito anos mais tarde, quando o Chile havia reencontrado a democracia, sofreram no coração de seu símbolo maior, a Nova York que se pretendia a Capital do Mundo, o mesmo horror que espalham mundo afora há décadas.

3. Trago comigo nítidas, na memória, as imagens dessas duas terças-feiras de setembro. Trago a imagem de aflição de Nova York em 2001, da mesma forma que trago a certeza de que jamais acabará de cicatrizar em mim a dor pelo que aconteceu em Santiago do Chile em 1973.

Do dia 11 de setembro de 2001, lembro perfeitamente de onde estava, de como vi na televisão o segundo avião explodindo contra uma das Torres Gêmeas, e pensei que era uma reprise do que alguém me disse ter visto minutos antes, e levei um átimo de tempo que parecia um tempo imenso para entender que era um segundo avião, e lembro das imagens de pessoas correndo desamparadas por ruas que conheci e conheço. Lembro a imagem do desespero, um homem saltando de ponta-cabeça, indo de uma altura absurda rumo ao chão. Lembro disso e de muito mais.

Da mesma forma que lembro perfeitamente meu assombro e meu desconcerto na terça-feira 11 de setembro de 1973, num tempo em que não havia telefone celular nem internet nem nada que permitisse uma comunicação rápida. Eu tinha 25 anos, amigos chilenos, e estava em Córdoba, no interior da Argentina. Havia chegado de Buenos Aires, onde morava, um dia antes. Vi na porta de um sindicato uma fila formada por jovens, e essa fila aumentava veloz, e perguntei a alguém o que estava acontecendo e ouvi que todos ali queriam se apresentar como voluntários para ir ao Chile defender o presidente Salvador Allende e lutar em defesa da democracia. Assim eu soube do golpe.

Allende já estava morto, e a democracia chilena, assassinada. Mas ninguém ali sabia disso. Eu não sabia, ninguém sabia.

Eu não sabia, ninguém sabia que naquele instante parte de nossas melhores esperanças jaziam calcinadas em Santiago do Chile, a cidade das grandes alamedas. Nem que parte de nossos anos jovens começavam a morrer naquela terça-feira de frio em Córdoba, interior da Argentina, enquanto do outro lado da cordilheira um céu opaco e um sol negro se instalavam sobre o país que Allende quis mais justo, mais generoso, mais digno.

4. O domingo, 11 de setembro de 2011, me encontra empapado das imagens dessas duas terças-feiras de horror. Uma, a de 2001, com o povo norte-americano como vítima. Outra, a terça-feira 11 de setembro de 1973, com os Estados Unidos como algozes. Sim, são trágicas as ironias da história.

O Chile soube reencontrar sua democracia – ainda frágil, ainda imperfeita, ainda com um longo caminho pela frente.

E o país que tanto colaborou para a tragédia dos chilenos, terá sabido entender a sua? Terá entendido o que fez ao mundo depois de padecer sua própria terça-feira de horror?

Essa a pergunta que atordoa minha dolorida memória desses dois setembros.


Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor do espanhol, tendo traduzido obras de Gabriel Garcia Marquez, Juan Rulfo, Jorge Luís Borges, entre outros. Ganhador do Prêmio Jabuti por duas vezes na categoria tradução. - Nasceu na cidade de São Paulo, em 1948.

Artigo extraído de http://www.cartamaior.com.br/

09/09/2011

Leda e o Cisne

Leda e o Cisne, de Rubens

Leonardo Da Vinci



Súbito golpe: as grandes asas a bater

Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada

Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;

O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.

Dedos incertos de terror, como empurrar

Das coxas bambas o emplumado esplendor?

Pode o corpo, sob esse ipulso de brancor,

O coração estranho não sentir pulsar?

Um tremor nos quadris engendra incontinenti

A muralha destruída, o teto, a torre a arder

E Agamêmnon, morto.

Capturada assim,

E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim

Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,

Amtes que a abandonasse o bico diferente?


William Butler Yeats, Dublin(Irlanda) - 1865-1939

07/09/2011

As multidões


Não é dado a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte. E somente aquele pode fazer, às expensas do gênero humano, uma festa de vitalidade, a quem uma fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia e da máscara, o ódio ao domicílio e a paxão por viagens.
Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua saolidão também não sabe estar só no meio de uma multidão ocupadíssima.
O poeta gosta desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele emtra, quando quer, no personagem de qualquer um. Só para ele tudo está vago; e se certos lugares lhe parecem fechados é que, a seu ver, não valem a pena ser visitados.
O passeador solitário e pensativo goza de uma singular embriaguez desta comunhão universal. Aquele que desposa a massa conhece os prazeres febris dos quais serão eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, ensimesmado como um molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias, todas as misérias que as circuntâncias lhe apresentem.
Isto que os homens denominam amor é bem pequeno, bem restrito, bem frágil comparado a esta inefável orgia, a esta solta prostituição da alma que se dá inteiramente, poesia e caridade, ao imprevisto que se apresenta, ao desconhecido que passa.
É bom ensinar, âs vezes, aos felizes deste mundo, pelo menos para humilhar um instante o seu orgulho, que existem bondades superiores âs deles, maiores e mais refinadas. Os fundadores de colônias, os pastores de povos, os sacerdotes missionários exilados no fim do mundo conhecem, sem dúvida, alguma coisa dessas misteriosas bebedeiras; e, no seio da vasta família que seu gênio criou, eles devem rir, algumas vezes, dos que se queixam de suas fortunas tão agitadas e de suas vidas tão castas.

Pequenos poemas em prosa - Charles Baudelaire, Paris (1821-1867)

06/09/2011

Des-construindo...





ONDE AGORA? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar. Dizer eu. Sem

pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir, chamar isso de adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo, vai, eu tenha ficado simplesmente alí, onde, em vez de sair, segundo um velho hábito, passar dia e noite tão longe de casa quanto possível, não era longe. Pode ter começado assim. Não me farei mais perguntas. Você só pensa em descansar, para agir melhor depois, ou sem segundas intenções, e eis que em muito pouco tempo já se está na impossibilidade de nunca mais fazer nada. Pouco importa como isso se deu. Isso, dizer isso, sem saber o quê. Talvez não tenha feito mais que ratificar um velho fato consumado. Mas não fiz nada de fato. Parece que falo, não sou eu, de mim, não é de mim. São algumas generalizações para começar. Como fazer, como vou fazer, que devo fazer, na situação em que estou, como proceder? Por aporia pura, ou melhor por afirmações e negações invalidadas à medida que são expressas, ou mais cedo ou mais tarde. Isso de uma forma geral. Deve haver outros expedientes. Senão seria um desepero total. Observar, antes de ir mais longe, ao adiante que digo aporia sem saber o que isso quer dizer. Pode-se ser efético de outro modo que à revelia? Não sei. Os sim e não são outra coisa, retornarão a mim à medida que progrida, e a forma de cagar-lhes em cima, mais cedo ou mais tarde, como um pássaro, sem esquecer um só.

Diz-se isso. O fato parece ser, se na situação em que me encontro pode-se falar de fatos, não apenas que eu vá ter de falar coisas das quais não posso falar, mas ainda, o que é ainda mais interessante, que eu, não sei mais, não faz mal. Entretanto sou obrigado a falar. Não me calarei nunca. Nunca.

Não estarei só, nos primeiros tempos. Estou bem certo disso. Só. É dito depressa. É preciso dizer depressa. E pode-se jamais saber, numa escuridão dessas? Vou ter companhia. Para começar. Alguns títeres. Eu os eliminarei em seguida. Se puder. E os objetos, qual deve ser a atitude em relação aos objetos? Primeiro que tudo, são necessários? Que pergunta. Mas não escondo de mim que se podem prever. O melhor é não decidir nada a respeito, de antemão. Se um objeto se apresentar, por uma razão ou por outra, levá-lo em conta. Lá onde há pessoas, dizem, há coisas. Quer dizer que ao admitir aquelas é preciso admitir estas? A ver. O que é preciso evitar, não sei por quê, é o espírito de sistema. Pessoas com coisas, pessoas sem coisas, coisas sem pessoas, pouco importa, conto mesmo poder desbaratar tudo isso em muito pouco tempo. Não vejo como. O mais simples seria não começar. Mas sou obrigado a começar. Quer dizer que sou obrigado a continuar. Terminarei talvez por ficar muito apertado, num cafarnaum. Idas e vindas incessantes, atmosfera de bazar. Estou tranquilo, vamos.


O Inominável, de Samuel Beckett, Dublin (Irlanda)- 1906-1989

04/09/2011

Soneto

"O beijo" - Auguste Rodin



Bronze e brasa na treva: diamantes

pingam

(vibram)

lapidam-se

(laceram)

luz sólida sol rijo ressonantes

nas arestas acesas: não vos deram,

calhaus

(calhaus arfantes)
outro leito

corrente onde roçar-vos e suaves

vossas faces tornardes vosso peito

conformar(como sino)

como de aves

em brado rebentando em cachoeira

dois amantes precípites brilhando

tições em selvoscura salto!

beira

de sudário ensopado abismo armando

amo r

amo r

amo r a


mo r te

r amo

de ouro fruta amargosa bala!

e gamo.

Mário Faustino, Teresina(PI) - 1930-1962

03/09/2011

Choro bandido

Marc Chagall

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu

serão bonitas, não importa,

são bonitas as canções.

Mesmo miseráveis os poetas,

os seus versos serão bons.

Mesmo porque as notas eram surdas

quando um deus sonso e ladrão

fez das tripas a primeira lira

que animou todos os sons

e aí nasceram as baladas

e os arroubos de bandidos como eu

cantando assim:

Você nasceu pra mim...

Mesmo que você feche os ouvidos

e as janelas do vestido,

minha musa vai cair em tentação,

mesmo porque estou falando grego

com sua imaginação;

mesmo que você fuja de mim

por labirintos e alçapões

saiba que os poetas, como os cegos,

podem ver na escuridão.

E eis que menos sábios do que antes

os seus lábios ofegantes

hão de se entregar assim:

Me leve até o fim,

me leve até o fim...

Mesmo que os romances sejam falsos

como o nosso, são bonitas, não importa,

são bonitas as canções.

Mesmo sendo errados os amantes,

seus amores serão bons!

Chico Buarque de Holanda

02/09/2011

Da solidão





Há coisas bem piores

do que ser sozinho,

mas âs vezes levamos décadas

para percebê-lo.

E ainda mais vezes

é demasiado tarde.

E não há nada pior do que

demasiado tarde!


Charles Bukowsky