São tudo o que ela consegue ver, salpicando os azulejos brancos da parede do banheiro. Eles explodem na sua cabeça, espirrando miolos de água, enquanto outros enxergam o seu destino efêmero de queda; a cantilena incessante dos pingos torna-se um murmúrio de raiva, enquanto se despedaçam em irmãos menores que se juntam com os outros miolos, outras águas, destinos sombrios. A mulher enxerga a parede e dezenas de olhos cristalinos devolvem o olhar com a fúria dos que estão mortos. Eles escorrem pela parede do banheiro, alguns com a rapidez do pensamento, ansiosos para chegar ao chão, outros com a elegância das pessoas que usam cartola, ultrapassando cada rebite entre azulejos com a delicadeza de quem transpõe poças em dias de chuva, um passo de cada vez. A mulher encosta a testa no frio da parede, e os pingos da testa encontram os que estão nos azulejos; o equilíbrio rompe quando gotas estranhas se misturam, subitamente, sem nenhuma apresentação preliminar, a guerra para manter sua integridade resultando em uma carnificina incolor no branco indiferente dos azulejos. Pingos, muitos, continuam caindo para a morte certa, e no meio dessa precipitação uma vida inteira passa; alguns se entregam a orgias desenfreadas com dezenas de desconhecidos, outros rezam para seu deus de ferro e quentes engrenagens e existem aqueles que sonham com a derradeira unidade, circulando ao redor do ralo do banheiro. Contudo, alguns pingos são diferentes dos outros: eles brotam de dentro do castanho da mulher. Ao se depararem com o caos que reina ao seu redor, tentam voltar, mas é tarde, e os pingos sem gosto sentem um inesperado prazer ao bater nos salgados e dividí-los em pedaços, provando que são iguais, não importa a origem. O corpo da mulher besunta-se com o sangue invisível das dezenas, centenas, milhares que já morreram tentando destruir o concreto da pele; a violência preenche o banheiro enquanto os mortos se empilham, escorrendo para o chão, onde existem pingos vermelhos que, dotados de sabedoria ancestral, não se misturam e escorrem em um fluxo contínuo, levando consigo o feto tão sonhado, rodopiando ao redor do ralo com a placidez das coisas inveitáveis.
Conto extraído de O homem despedaçado, de Gustavo Czekster, mestre em Literatura Comparada, pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
OBS: As fotos do "cabeçalho" e da postagem são de Amy Hildebrand, fotógrafa cega.
Perfeito, Ci. Fui lendo sem saber a autoria, e só no fim vi de quem era. Vc acredita que eu vi algo de ti no texto? Maravilhoso e as fotos são de Amy, que olha com olhos interiores. Adorei tudo!
ResponderExcluirBeijos,
Acredito, Tânia, porque me identifiquei muito com o estilo de Gustavo Czekster, é
Excluircomo se já o conhecesse, e ao mesmo tempo
aquela sensação de como eu gostaria de saber expressar-me com a sua desenvoltura, com a sutileza e a mestria
que ele o faz! Seus contos são muito bons!
As fotos de Amy são tão boas que não se percebe que ela é cega, acho até que ela
captura as imagens de uma forma que muitos fotógrafos considerados bons não conseguem.
beijoss
:)
ResponderExcluirOh, que contente fico em ver um conto do Gustavo aqui!!
Ele é um escritor de primeira linha.
E um doce de pessoa.
Beijoss, Ci.
Eu que me sinto orgulhosa de poder publicar um
ResponderExcluirconto dele, aqui no "meu" espaço :) é uma honra
pra mim!
beijoss, Lê
Ci, já coloquei no face e avisei a ele.
ResponderExcluirQualquer hora, ele vem aqui.
beijoss :)
Oi, Cirandeira, a Lelena comentou que tinhas colocado um texto de "O Homem Despedaçado" no teu blog, o qual eu não conhecia e já acrescentei nos meus favoritos, gostei demais. É sempre estranho ver as palavras da gente em outro lugar, reli o conto e ele não mais pareceu meu, pareceu de outra pessoa (e talvez seja, quem nos garante que somos sempre o mesmo?).
ResponderExcluirObrigado pela gentileza das tuas palavras e das tuas considerações, são estímulos como este que fazem a gente continuar escrevendo. :-)
Oi, Gustavo, que satisfação, e que honra
Excluirreceber tua visita! Tens toda a razão em
"estranhar" o teu conto, às vezes, estranhamos até o que falamos alguns instantes depois, os pensamentos têm uma velocidade tão vertiginosa, que se torna difícil acompanhá-los :)
Aproveito a oportunidade para agradecer a dedicatória que me fizeste. Gostei muito de ler-te (ainda estou lendo, aos poucos), o conto que dá título ao livro
foi o primeiro que lí, achei genial. Meus
PARABÉNS! Tens um longo e rico caminho pela frente!!
beijoss
TREMENDO TRIBUTO A LA LLUVIA. GENIAL!!!!
ResponderExcluirUN ABRAZO
pinga que pinga a chuva tudo lava e leva
ResponderExcluirbeijinho