DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

04/09/2012

pingos


São tudo o que ela consegue ver, salpicando os azulejos brancos da parede do banheiro. Eles explodem na sua cabeça, espirrando miolos de água, enquanto outros enxergam o seu destino efêmero de queda; a cantilena incessante dos pingos torna-se um murmúrio de raiva, enquanto se despedaçam em irmãos menores que se juntam com os outros miolos, outras águas, destinos sombrios. A mulher enxerga a parede e dezenas de olhos cristalinos devolvem o olhar com a fúria dos que estão mortos. Eles escorrem pela parede do banheiro, alguns com a rapidez do pensamento, ansiosos para chegar ao chão, outros com a elegância das pessoas que usam cartola, ultrapassando cada rebite entre azulejos com a delicadeza de quem transpõe poças em dias de chuva, um passo de cada vez. A mulher encosta a testa no frio da parede, e os pingos da testa encontram os que estão nos azulejos; o equilíbrio rompe quando gotas estranhas se misturam, subitamente, sem nenhuma apresentação preliminar, a guerra para manter sua integridade resultando em uma carnificina incolor no branco indiferente dos azulejos. Pingos, muitos, continuam caindo para a morte certa, e no meio dessa precipitação uma vida inteira passa; alguns se entregam a orgias desenfreadas com dezenas de desconhecidos, outros rezam para seu deus de ferro e quentes engrenagens e existem aqueles que sonham com a derradeira unidade, circulando ao redor do ralo do banheiro. Contudo, alguns pingos são diferentes dos outros: eles brotam de dentro do castanho da mulher. Ao se depararem com o caos que reina ao seu redor, tentam voltar, mas é tarde, e os pingos sem gosto sentem um inesperado prazer ao bater nos salgados e dividí-los em pedaços, provando que são iguais, não importa a origem. O corpo da mulher besunta-se com o sangue invisível das dezenas, centenas, milhares que já morreram tentando destruir o concreto da pele; a violência preenche o banheiro enquanto os mortos se empilham, escorrendo para o chão, onde existem pingos vermelhos que, dotados de sabedoria ancestral, não se misturam e escorrem em um fluxo contínuo, levando consigo o feto tão sonhado, rodopiando ao redor do ralo com a placidez das coisas inveitáveis.
Conto extraído de O homem despedaçado, de Gustavo Czekster, mestre em Literatura Comparada, pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
OBS: As fotos do "cabeçalho" e da postagem são de Amy Hildebrand, fotógrafa cega.

9 comentários:

  1. Perfeito, Ci. Fui lendo sem saber a autoria, e só no fim vi de quem era. Vc acredita que eu vi algo de ti no texto? Maravilhoso e as fotos são de Amy, que olha com olhos interiores. Adorei tudo!
    Beijos,

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    1. Acredito, Tânia, porque me identifiquei muito com o estilo de Gustavo Czekster, é
      como se já o conhecesse, e ao mesmo tempo
      aquela sensação de como eu gostaria de saber expressar-me com a sua desenvoltura, com a sutileza e a mestria
      que ele o faz! Seus contos são muito bons!
      As fotos de Amy são tão boas que não se percebe que ela é cega, acho até que ela
      captura as imagens de uma forma que muitos fotógrafos considerados bons não conseguem.

      beijoss

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  2. :)
    Oh, que contente fico em ver um conto do Gustavo aqui!!
    Ele é um escritor de primeira linha.
    E um doce de pessoa.
    Beijoss, Ci.

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  3. Eu que me sinto orgulhosa de poder publicar um
    conto dele, aqui no "meu" espaço :) é uma honra
    pra mim!

    beijoss, Lê

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  4. Ci, já coloquei no face e avisei a ele.
    Qualquer hora, ele vem aqui.
    beijoss :)

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  5. Oi, Cirandeira, a Lelena comentou que tinhas colocado um texto de "O Homem Despedaçado" no teu blog, o qual eu não conhecia e já acrescentei nos meus favoritos, gostei demais. É sempre estranho ver as palavras da gente em outro lugar, reli o conto e ele não mais pareceu meu, pareceu de outra pessoa (e talvez seja, quem nos garante que somos sempre o mesmo?).
    Obrigado pela gentileza das tuas palavras e das tuas considerações, são estímulos como este que fazem a gente continuar escrevendo. :-)

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    1. Oi, Gustavo, que satisfação, e que honra
      receber tua visita! Tens toda a razão em
      "estranhar" o teu conto, às vezes, estranhamos até o que falamos alguns instantes depois, os pensamentos têm uma velocidade tão vertiginosa, que se torna difícil acompanhá-los :)
      Aproveito a oportunidade para agradecer a dedicatória que me fizeste. Gostei muito de ler-te (ainda estou lendo, aos poucos), o conto que dá título ao livro
      foi o primeiro que lí, achei genial. Meus
      PARABÉNS! Tens um longo e rico caminho pela frente!!

      beijoss

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  6. TREMENDO TRIBUTO A LA LLUVIA. GENIAL!!!!
    UN ABRAZO

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  7. pinga que pinga a chuva tudo lava e leva

    beijinho

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