DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/10/2012

Olhos nus







João Rosa não chegou a bater à porta. Irreconhecível, Clarice saiu de casa, irrompeu para o mundo, adolescente e dona de si mesma, como se a rua fosse o seu natural território.
- Ah, João...agora eu ía sair.
- Vinha buscar os meus livros.
- Pode vir amanhã, agora não me dá jeito.
O que quer que ele fosse dizer não tinha importância: Clarice tinha pressa, como só pode ter quem se esqueceu de viver. Por mais breve que seja esse esquecimento ele dura sempre demasiado.
- Bom, eu  precisava realmente dos meus livros...
Clarice parou. Deu uns passos na direção do ex-companheiro, estacou bem próximo dele. E contemplou-o, inquisitiva, antes de falar:
- É mesmo os livros que quer?
Então, olhos nos olhos, se deu o impensável. João Rosa, encartado caçador de mulheres, não foi capaz de enfrentar Clarice. Rosto baixo, pálpebras tremeluzentes, em véspera de lágrima.
- Onde vai, Clarice?
- Quem pergunta? É você?
- Por favor, Clarice: vai ter com alguém?
Ela não respondeu. Flutuava em seus lábios um hastear de feliz confiança. Pousou o braço no ombro dele, consoladora.
- Quem sabe?
E virou as costas, cruzando a rua e afastando-se no outro lado do passeio. Escutou-se então, o grito rouco de Rosa:
- Clarice, volte...eu não estou a ver.
O tom era de desespero. Ela parou, deu meia volta e atravessou, de volta, a estrada.
- Eu estou cego, Clarice!
- Você apenas está chorando, meu querido.
- Chorando, eu?
- Eu sei. Porque esses, no seu rosto, são os meus olhos.
E lágrimas que não eram suas desceram como gotas de chuva em vidro de janela.


 
Mia Couto em Dez contos para canções de Chico Buarque


Um comentário:

  1. Sensacional, não? E releio, que a hora é boa e me cai taõ bem esse sentir..Vou reler. E remoer...:-)

    Beijos, Ci

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