De resto eu não sonho, eu não vivo, sonho a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha, o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundí numa cor uma de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante acção, nunca desaparecem o do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida - seja isso real ou ilusão - é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo - ou, pelo menos, pode conceder-se vendo-o e possuindo-o e isso é []
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
Fernando é a pessoa. Falar e ouvir dos sonhos é coisa que não me cansa. Aguço os sentidos sempre. No mais, isso é tão bom, ter algo de impenetrável, algo de tão íntimo, algo a que olhamos com surpresa, como se nosso não fosse, e é tão e unicamente nosso: os sonhos. Mais que isso: viver o sonho e sonhar a vida! Seria perfeito!
ResponderExcluirBeijos, Ci!
Há alguns anos li esse livro.
ResponderExcluirPassei uns dois ou três meses agarrada a ele, em um desassossego de dar dó.
Levava para a terapia, lia, sofria.
Aí, um dia o guardei. E agora o temo porque as palavras saíram do papel.
beijos, Ci.