DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/05/2013

O mito do Amor

 


No dia em que Afrodite nasceu, os deuses davam um banquete. Achava-se entre eles o filho de Astúcia, que é Engenho. Acabado o banquete, chegou Penúria para mendigar, visto que havia mesa farta, e parou à porta. Entretanto, Engenho, ébrio de néctar - o vinho ainda não existia - saiu para o jardim de Zeus e caiu num sono pesado. Penúria, eternamente em dificuldades, entendeu de ter um filho de Engenho; deitou-se com ele e concebeu o Amor. Eis uma das razões de se ter tornado o Amor companheiro e servo de Afrodite: ter sido concebido no nascimento dela; outra é ser Afrodite bela e ele, por natureza, um amante do belo. Filho,  pois, de Engenho e Penúria, o Amor teve esta sina: primeiro, é um eterno mendigo, longe de ser um ente mimoso e bonito, como pensa a maioria; ao contrário, é aturado, poento, descalço, sem teto, sempre deitado no chão, sobre terra nua, dormindo ao relento nas soleiras e nos caminhos, porque herdou a natureza da mãe e passa a vida na indigência. Mas puxando pelo pai, vive espreitando o que é belo e bom, porque é viril, acometedor, teso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talentoso, passando a vida a filosofar. Ademais, não nasceu imortal nem mortal, mas no mesmo dia, ora viça e vive, ora falece, para de novo surgir vivo quando entra a operar a natureza engenhosa que lhe vem do pai. Todavia, a renda dos seus talentos sempre se lhe esvai, de sorte que o Amor nunca está na miséria e nunca na opulência. Também fica a meio caminho entre o saber e a ignorância. Eis a explicação: deus nenhum se entrega à filosofia, nem aspira a tornar-se sábio, porque já o é; nem se entrega à filosofia outro qualquer que seja sábio; por sua vez, os ignorantes não se ocupam de filosofia, nem aspiram a ser sábios; pois nisto mesmo consiste a desgraça do ignorante, em julgar, não sendo distinto nem inteligente, que o é quanto lhe basta; porquanto quem não se crê carecido não aspira àquilo que não imagina lhe falte.

 
Platão, em Diálogos 


25/05/2013

John Ashbery

Monet
 
 
Criar uma obra de arte sobre a qual o crítico não consiga falar deveria ser a principal preocupação do artista.
[...]
Penso que todo poema, antes de ser escrito. é algo desconhecido, e aquele que não é, nem valeria a pena escrever. (...) e meu sentimento é que um poema que comunica algo já conhecido do leitor não está realmente comunicando nada a ele, e, na verdade, demonstra uma falta de respeito por ele.
 
 
******
 
[...] a carnívora forma destes versos consiste
em devorar sua própria natureza nada
deixando, a não ser uma amarga impressão
de ausência, que, como sabemos
envolve presença, mas enfim.
No entanto, estas são ausências fundamentais,
lutando para
se levantarem e partirem por conta própria.
 
 
John Ashbery, nasceu em Rochester(EUA), em 1927.

22/05/2013

MADRUGADA - Desossar horas entre dedos


 
 
Fato 1. Duas gavetas fechadas. Não sei o que fazer com elas. Vou esperar as lembranças que vêm quando paramos no tempo.
[...]
 
Tudo está disposto à confusão. O nada se diz de muitos modos e tenho só duas gavetas para dar cabo da questão.
Porém, como o nada é sorrateiro, diante dos sistemas e classificações quase evidentes, basta perceber, deve haver em algum lugar o abismo de olhos rígidos a pulsar prestes ao bote. Em uma das gavetas, é certo, mais que certo, um axioma, uma verdade das que tornam inerte a vida toda. É dele que vou falar, mesmo sabendo que deveria calar.
Então, primeiro, calo-me, mas não sei por quanto tempo. Um minuto, um segundo, um dia, um ano. Talvez o tempo exato do talvez que me alucina. E como há muitos modos de dizer o nada, e as duas gavetas e o sorrateiro abismo de olhos para o nada, existem os vários mundos e o modo de dizê-los, mas o que interessa aqui são os modos de não dizer e desdizer. Para amenizar a imaginação até que fique morta, pois tem me dado muita dor de cabeça. Direi para  qualquer efeito de apenas dois dos mundos o que se diz e o que se desdiz, a opção pela facilidade é sempre a mais sábia. E prestarei atenção em mim, antes do inventário dos feitos. Talvez em pouco tempo eu mude de ideia, pois a classificação tem um indício, mas jamais tem limite.
Eu, e eu? Vivo sobre esta cadeira sem rodas. Já deixei de ser humana e virei coisa. Igualei-me ao ambiente. Não é difícil confundir o imóvel e o objeto. Mas classificar-me cansa como seguir Sócrates e seu conhece-te a ti mesmo.
Ninguém conhece a si mesmo.
Assim desosso as horas, ou, para evitar metáforas,  espero.
 
 
Marcia Tiburi,  em   Magnólia - Editora Bertrand do Brasil Ltda. 

18/05/2013





Chen Hongshou


Veio ter comigo hoje a Poesia
 

 Veio ter comigo hoje a poesia. Há quantos anos?
 Desde a juventude. Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
  E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
  reinventou-me a antiga plenitude que já não invento.
  Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
  em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
  e há sempre no que faço um intervalo.
  Estamos ambos tão velhos — que vens fazer?
  — a cama entre nós da nossa antiga função.
  Nublado o olhar só de a ver.
  E tomo-lhe em silêncio a mão.
 
Vergílio Ferreira, Portugal (1916-1996)'

15/05/2013

A cabra e Francisco

Madrugada. O hospital, como o Rio de Janeiro, dormia. O porteiro vê diante de si uma cabrinha malhada, pensa que está sonhando.
- Bom palpite, veio mesmo na hora. Ando com tanta prestação atrasada, meu Deus.
A cabra olhava-o fixamente.
- Esta bem, filhinha. Agora pode ir passear. Depois você volta, sim?
Ela não se mexe, séria.
- Vai cabrinha, vai. Seja camarada. Preciso sonhar outras coisas. É a única hora em que sou dono de tudo, entende?
O animal chega-se mais perto dele, roça-lhe o braço. Sentindo-lhe o cheiro, o homem percebe que é de verdade, e recua.
- Essa não! Que é que você veio fazer aqui, criatura? Dê o fora, vamos.
Repele-a com jeito manso, porém a cabra não se mexe, encarando-o  sempre.
- Aiaiai! Bonito. Desculpe, mas a senhora tem de  sair com urgência, isto´aqui é um estabelecimento público. (Achando pouco satisfatória a razão) Bem, se é público devia ser para todos, mas você compreende...(Empurra-a docemente para fora, e volta à cadeira)
- O quê? Voltou? Mas isso é hora de me visitar, filha? Está sem sono? Que é que há? Gosto muito de criação, mas aqui no hospital, antes do dia clarear...(Acaricia-lhe o pescoço) Que é isso! Você está molhada? Essa coisa pegajosa...O quê, sangue? Por que não me disse logo, cabrinha de Deus? Por que ficou me olhando assim feito boba? Tem razão, eu é que não entendí, devia ter morado logo. E como vai ser? Os doutores daqui são um estouro, mas cabra é diferente, não sei se eles topam. Sabe de uma coisa? Eu mesmo vou te operar!
Corre à sala de cirurgia, toma um bisturi, uma pinça; à farmácia, pega mercuriocromo, sulfa e gaze; e num canto do hospital, assistido por dois serventes, enquanto o dia vai nascendo, extrai do pescoço da cabra uma bala de calibre 22, ali cravada quando o bichinho, ignorando os costumes cariocas da noite, passava perto de uns homens que conversavam à porta de um bar.
O animal deixa-se operar,  com a maior serenidade. Seus olhos envolvem o porteiro numa carícia agradecida.
- Marcolina. Dou-lhe este nome em lembrança de uma cabra que tive quando garoto, no Icó. Está satisfeita, Marcolina?
- Muito, Francisco.
Sem reparar que a cabra aceitara o diálogo, e sabia o seu nome, Francisco continuou:
- Como foi que você teve a ideia de vir ao Miguel Couto? O Hospital Veterinário é na Lapa.
- Eu sei, Francisco. Mas você não trabalha na Lapa, trabalha no Miguel Couto.
- E daí?
- Dai, preferi  ficar por aqui mesmo e me entregar a seus cuidados.
- Você me conhecia?
- Não posso explicar mais do que isso, Francisco. As cabras não sabem muito sobre essas coisas. Sei que estou bem a seu lado, que você me salvou. Obrigada, Francisco.
E lambendo-lhe afetuosamente a mão, cerrou os olhos para dormir. Bem que precisava.
Aí Francisco levou um susto, saltou para o lado.
- Que negócio é esse: cabra falando?! Nunca vi coisa igual na minha vida. E logo comigo, meu pai do céu!
A cabra descerrou um olho sonolento, e por cima das barbas parecia esboçar um sorrisi.
- Pois você não se chama Francisco, não tem o nome do santo que mais gostava de animais neste mundo? Que tem isso, trocar umas palavrinhas com você? Olhe, amanhã vou pedir ao Ariano Suassuna que escreva um auto da cabra, em que você vai para o céu, ouviu?
 
 
Estrambote
 
 
Que um dia Francis Jammes abra
lá no alto seu azul aprisco.
Mande entrar Marcolina, a cabra,
e seu bom amigo Francisco.
 
 
 Carlos Drummond de Andrade

13/05/2013

De Marguerite Duras





No fundo, é uma coisa que não entendo: por que algumas pessoas têm necessidade de viver duas vezes? Uma vez quando vivem, e outra quando escrevem? E por que essa segunda vez é mais importante que a primeira? Isto é tão misterioso como concluir que as horas de sono, o sonho, são mais importantes do que as horas que passamos acordados. Vou tentar fazer uma analogia. O dia é legível. A noite é ilegível. O escritor é aquele que pode ler a noite.

 
 
Marguerite Donnadieu nasceu na antiga Conchinchina (atual Vietnã). Escritora, cineasta, dramaturga, escreveu 34 romances, 12 peças e dirigiu 19 filmes. Entre suas obras destacam-se: O deslumbramento, A dor, O amante, Olhos azuis. (1914-1996).

07/05/2013

Um Brasil quase desconhecido...!



 
 
 
 
 
 
 
 


Segue abaixo o relato de uma pessoa que passou recentemente em um concurso público federal e foi trabalhar em Roraima. Trata- se de um Brasil que a gente não conhece...
As duas semanas em Manaus foram interessantes para conhecer um Brasil um pouco diferente, mas chegando em Boa Vista (RR) não pude resistir a fazer um relato das coisas que tenho visto e escutado por aqui.
Conversei com algumas pessoas nesses três dias, desde engenheiros até pessoas com um mínimo de instrução. Para começar, o mais difícil de encontrar por aqui é roraimense. Para falar a verdade, acho que a proporção de um roraimense para cada 10 pessoas é bem razoável, tem gaúcho, carioca, cearense, amazonense, piauiense, maranhense e por aí vai. Portanto, falta uma identidade com a terra. Aqui não existem muitos meios de sobrevivência, ou a pessoa é funcionária pública, (e aqui quase todo mundo é, pois em Boa Vista se concentram todos os órgãos federais e estaduais de Roraima, além da prefeitura é claro) ou a pessoa trabalha no comércio local ou recebe ajuda de Programas do governo. Não existe indústria de qualquer tipo. Pouco mais de 70% do território roraimense é demarcado como reserva indígena, portanto restam apenas 30%, descontando-se os rios e as terras improdutivas que são muitas, para se cultivar a terra ou para a localização das próprias cidades. Na única rodovia que existe em direção ao Brasil (liga Boa Vista a Manaus, cerca de 800 km ) existe um trecho de aproximadamente 200 km( reserva indígena Waimiri Atroari) por onde você só passa entre 6:00 da manhã e 6:00 da tarde, nas outras 12 horas a rodovia é fechada pelos índios (com autorização da FUNAI e dos americanos) para que os mesmos não sejam incomodados... Detalhe: Você não passa se for brasileiro, o acesso é livre aos americanos, europeus e japoneses. Desses 70% de território indígena, diria que em 90% dele ninguém entra sem uma grande burocracia e autorização da FUNAI. Outro detalhe: americanos entram à hora que quiserem. Se você não tem uma autorização da FUNAI mas tem dos americanos então você pode entrar. A maioria dos índios fala a língua nativa além do inglês ou francês, mas a maioria não sabe falar português. Dizem que é comum na entrada de algumas reservas encontrarem- se hasteadas bandeiras americanas ou inglesas. É comum se encontrar por aqui americano tipo *nerd* com cara de quem não quer nada, que veio caçar borboleta e joaninha e catalogá-las, mas no final das contas, pasme, se você quiser montar uma empresa para exportar plantas e frutas típicas como cupuaçu, açaí, camu-camu etc., medicinais ou componentes naturais para fabricação de remédios, pode se preparar para pagar '*royalties*' para empresas japonesas e americanas que já patentearam a maioria dos produtos típicos da Amazônia...
Por três vezes repeti a seguinte frase após ouvir tais relatos: Os americanos vão acabar tomando a Amazônia. E em todas elas ouvi a mesma resposta em palavras diferentes.. Vou reproduzir a resposta de uma senhora simples que vendia suco e água na rodovia próximo de Mucajaí:
Irão não minha filha, tu não sabe, mas tudo aqui já é deles, eles comandam tudo, você não entra em lugar nenhum porque eles não deixam. Quando acabar essa guerra aí eles virão pra cá, e vão fazer o que fizeram no Iraque quando determinaram uma faixa para os curdos onde iraquiano não entra, aqui vai ser a mesma coisa!!! A dona é bem informada não?
O pior é que segundo a ONU o conceito de nação é um conceito de soberania e as áreas demarcadas têm o nome de nação indígena. O que pode levar os americanos a alegarem que estão libertando os povos indígenas. Fiquei sabendo que os americanos já estão construindo uma grande base militar na Colômbia, bem próximo da fronteira com o Brasil numa parceria com o governo colombiano com o pseudo objetivo de combater o narcotráfico. Por falar em narcotráfico, aqui é rota de distribuição, pois essa mãe chamada Brasil mantém suas fronteiras abertas e aqui tem estrada para as Guianas e Venezuela.
Nenhuma bagagem de estrangeiro é fiscalizada, principalmente se for americano, europeu ou japonês, (isso pode causar um incidente diplomático). Dizem que tem muito colombiano traficante virando venezuelano, pois na Venezuela é muito fácil comprar a cidadania venezuelana por cerca de 200 dólares. Pergunto inocentemente às pessoas: porque os americanos querem tanto proteger os índios ? A resposta é absolutamente a mesma:  porque as terras indígenas além das riquezas animal e vegetal, da abundância de água, são extremamente ricas em ouro - encontram-se pepitas que chegam a ser pesadas em quilos), diamante, outras pedras preciosas, minério e nas reservas norte de Roraima e Amazonas, ricas em PETRÓLEO. Parece que as pessoas contam essas coisas como que num grito de socorro a alguém que é do sul, como se eu pudesse dizer isso ao presidente ou a alguma autoridade do sul que vá fazer alguma coisa.
É, pessoal... saio daqui com a quase certeza de que em breve o Brasil irá diminuir de tamanho. Será que podemos fazer alguma coisa??? Acho que sim.

. Mara Silvia Alexandre Costa - Depto de Biologia Cel. Mol. Bioag.Patog. FMRP - USP
  Opinião pessoal:   Do meu ponto de vista seria interessante que o país inteiro ficasse sabendo desta situação através dos telejornais antes que isso venha a acontecer.

05/05/2013

O Homem e sua imagem

 
John Batho
Um homem que se amava e não tinha rivais
Em sua mente se achava o mais belo do mundo.
Os espelhos achava imprecisos demais,
E vivia feliz em seu erro profundo.
Com fito de o curar a sorte oficiosa
Punha-lhe à frente, pressurosa
Os conselheiros mudos que as mulheres adoram:
Espelhos pela casa, espelhos nos mercantes,
Espelhos na algibeira dos galantes,
Espelhos nas cinturas das senhoras.
Que faz nosso Narciso? Ele vai confinar-se
Nos mais longes confins que pode imaginar-se,
Sem ousar enfrentar de espelhos a aventura.
Mas um longo canal feito por fonte pura
Se encontra alí daqueles lados;
Ele se vê, se zanga, e os olhos irritados
Pensam estar a ver alguma vã quimera.
Tudo o que pode faz para evitar essa água;
Mas o canal tão lindo era
Que ele só se afasta com mágoa.
 
Vê-se aonde eu quero chegar.
Eu falo a todos, e esse erro gritante
É mal que cada um apraz-se em cultivar.
Nossa alma é esse homem de si mesmo amante;
Tantos espelhos são as tolices alheias,
Espelhos a pintar nossas falhas tão feias;
Quanto ao canal, já sabe a gente,
das Máximas é o livro, simplesmente.
 
em Fábulas de La Fontaine