DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/03/2014

Um poema de Golgona Anghel ( Romênia, 1979)





Vim porque me pagavam,

e eu queria comprar o futuro a prestações.
Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos da Páscoa e pulseiras de lata.

A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quantos mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficaram na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto
.
Com estas mãos levantei a poeira
com que agora cubro os nossos corpos.
 
Com estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.
 
Alguém se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como regressar a casa;
e que bonito me fica a esperança
enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória.
 
 
[em Vim porque me pagavam, Mariposa Azual, 2011]

27/03/2014

Sem dizer-me nada


 
 
 
Contos. Vários contos nos cantos de uma página, assim de repente. Acordei no meio da noite com uma profusão de palavras distribuídas ordenadamente em forma de tabuleiro de xadrez. Um jogo de palavras que eu não sabia como jogar. Uma estória que eu não sabia contar, não entendia o seu enredo. Tentei "salvá-las", colocá-las numa caixa. Impossível. Todas elas se foram sem dizer-me nada. Nem cheguei a conhecê-las, apenas vislumbrei-as. Sombras de estórias que voltaram a adormecer em meu cérebro...

24/03/2014

Uma outra imagem de Narciso

Narciso revisitado na obra de Fabricius Nery
 
 

Narciso, Fabricius Nery
 
 


Para o artista não é necessário apenas produzir uma imagem, mas problematizar, através das próprias criações, qual o status que goza a imagem no mundo contemporâneo, mundo no qual ele é, também, um criador de representações. É o que faz Fabricius Nery, numa instigante obra que denominou Narciso.
Pintada em janeiro de 2014, a obra retoma o mito de Narciso, ou seja, a história do jovem que se deixa morrer ao se apaixonar por si mesmo ao se deparar com a própria imagem refletida num lago. Nery retoma o mito criando outra perspectiva iconográfica, inserindo-a na questão central da vida contemporânea: o sentido da obsessão pela fabricação da própria imagem e sua consequente adoração como uma problemática de nossos dias.
Dessa vez, Narciso está diante de um espelho, onde se vê a si próprio, fotografando-se nu, sendo visível, no pênis ereto, a excitação sexual que é gerada por essa relação de adoração pela própria imagem e, ainda mais, por sua fabricação.
Além da foto que faz de si mesmo ao espelho, de corpo inteiro, aparece ainda, fora do espelho, um dos pés do personagem, indicando que outra camada de realidade se faz presente no quadro. Como se nós, espectadores, fôssemos partícipes da cena, quase fotógrafos de nós mesmos, olhando no espelho nossa própria imagem sendo registrada. Desse inferno ninguém está livre, parece dizer o pintor.
O quadro vai além, colocando na forma labiríntica de sua construção a ideia de que é a geração da própria imagem e a observação desse ato que impulsiona, por si mesmo, o prazer narcísico.
Esse recurso da interpenetração de várias realidades é um dos elementos fortes da arte contemporânea e de sua reflexão sobre a realidade fragmentada, enganosa e labiríntica do mundo. Nery está atento ao que se passa ao seu redor. Para pensar qual o sentido da imagem no mundo atual, nada melhor para o artista, ele também fabricador de imagens, do que trazer a figura de Narciso para o centro do debate. A sua tela enfrenta a questão. Para além da geometria do espelho que reflete o personagem, outras geometrias vão se recortando dentro do quadro, ampliando essa ideia de que uma imagem não passa de uma sobreposição de camadas da realidade, que são recortadas e montadas incessantemente como se fossem a própria "realidade".
 
O procedimento formal de desconstrução das próprias imagens que cria, refletindo sobre seu valor no mundo atual, não é novo na obra de Fabricius Nery, que tem adotado o procedimento do recorte em suas telas como um dos elementos de sua poética. Talvez esteja aí o sentido de sua contemporaneidade. Faz-nos pensar naquilo que Jean Baudrillard disse da fotografia: "A foto é o que nos aproxima mais da mosca, de seu olho facetado e de seu voo em linha quebrada".
 
  O resultado desse procedimento, em seu Narciso, é a sensação que o quadro nos transmite, de que o que estamos vendo já foi fotografado e é, ao mesmo tempo, a própria foto no momento em que está sendo feita e, em seguida, ela já em situação de imagem fixa em um álbum. Isso cria dentro da tela quatro tempos: a figura do pé aparece no interior do espelho e também fora do espelho, a imagem que vemos já é a fotografia tirada e revelada e a foto que vemos está fixada no quadro como se já estivesse contida em algum álbum de fotografias.
O quadro é, ele próprio, o registro dessa atividade de se fotografar a si mesmo e se ver ao mesmo tempo se fotografando e o transformar-se da imagem pronta em objeto para ser visto pelo próprio criador da imagem e pelos outros, agora convertidos em espectadores do meu amor próprio, de minha autoimagem publicitária, de minha figura narcísica.
A perspicácia do artista foi somar a esse labirinto de imagens os recortes geométricos ao qual a figura central se submete. E a representação que vemos é uma possível fotografia, situada dentro do quadro, sobre a cor vermelho escuro, recortada por uma geometria que a faz parecer uma foto de álbum.
 
Estamos diante de uma imagem que acontece no instante em que se faz existir e, ao mesmo tempo, já condicionada em espaço de possível ou desejada admiração como fotografia de si mesmo.
A leitura atual do tema faz-se necessária. Vivemos num tempo onde a imagem narcísica de si mesmo transformou-se num fetiche absoluto ou em uma neurose aguda. A adoração da autoimagem, acima de todos os outros valores, é quase o "espírito de nosso tempo". Com a vulgarização da fotografia digital ou de celular, pela qual todos podem se fotografar o tempo todo e se exibir em redes sociais como se fossem personagens importantes (para outros narcisos que fazem e pensam a mesma coisa), a ideia de uma sociedade onde as pessoas estão apaixonadas por si mesmas é corrente e é necessária sua discussão em qualquer debate cultural.
A excitação sexual explícita da figura central, que se fotografa no quadro de Nery, revela esse amor obsessivo por si mesmo, que toma conta do mundo contemporâneo, num jogo libidinal doentio. Nada parece dar mais prazer ao narcisista do que registrar a sua própria imagem e vê-la refletida em algum lugar. Por isso, fez-se necessário ao pintor criar o desnudamento da figura e seu obsessivo olhar narcísico, que ao mesmo tempo constrói e admira, para que se revele esse prazer, esse desejo e essa excitação pela autoimagem que faz do ato narcísico a raison d´être do homem contemporâneo.
A face introspectiva do personagem revela esse estar-se no mundo apenas para si mesmo, prisioneiro psíquico de um universo fechado ao entorno, alienado daquilo que não seja a sua própria imagem. É o retrato do gozo por si mesmo num rosto que quase fecha os olhos num momento de supremo deleite. E esse gozo existe enquanto imagem, porque tem como auxílio a máquina fotográfica (a flor Narciso de nossos dias), que registra essa entrega ao orgasmo que a imagem de si próprio lhe proporciona.
 
O que Nery acaba por fazer é revelar, nessa forma sobreposta e entrecortada de imagens, que "na fotografia as coisas articulam-se por uma operação técnica que corresponde à articulação de sua banalidade. Vertigem do pormenor perpétuo do objeto. O que é uma imagem para outra imagem, uma foto para outra foto: contiguidade fractal, nenhuma relação dialética. Nenhuma´visão de mundo`, nenhum olhar - a refração do mundo, em seu pormenor, com armas iguais". (Baudrillard)
O objetivo da investigação visual empreendida por Nery, recorrendo aqui novamente ao raciocínio de Baudrillard, é "reconstituir, como na anamorfose, a partir de seus fragmentos, e seguindo uma linha quebrada e fraturada, a forma secreta do nosso mundo".
 
Com essa obra Nery faz uma leitura radical e profunda sobre o duplo significado que hoje é atribuído à imagem: em primeiro lugar, o sentido da adoração da imagem vazia e publicitária de si mesmo; em segundo, como prisão que construímos para nós mesmos neste terreno movediço, que é um labirinto, onde o próprio conceito de real se transformou na ideia de imagem.


Jardel Dias Cavalcanti, Digestivo Cultural - http://www.digestivocultural.com  

20/03/2014

O azul do Nada






Sobre o azul dos meus olhos passa
uma cortina encobre 
teu rosto mascara 
palavras. 
 
No raso da água rasgo
meus olhos para te ver 
mas nada: :
as palavras nadam
 
meus olhos sombras.
Sob o azul nadir 

18/03/2014

Metafísica da saudade

 
 

Saudades de mim, da chuva que me caía em pedaços de estrelas cintilantes chicoteando meu corpo, sussurrando em meus ouvidos um cantar de pássaros à procura de seus ninhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris, pleno de abismos inexplorados.
Saudades de um não-ser querendo ser e não-sendo o desejado, germinando entre arbustos mergulhados em águas profundas e desconhecidas; uma saudade misturada ao vivido e ao que ainda está por vir ou ao que jamais será vivido.
 Uma saudade da não-saudade, do Nada, do antes de existir, sem ter morrido, sem ter nascido.

Uma saudade metafísica, talvez?

13/03/2014

Descalabros políticos

Vivemos um período de dificuldades de toda ordem: milhares de famílias desabrigadas nos Estados do Acre e de Rondônia, vítimas  da enchente dos rios Madeira, Mamoré e Tocantins; por motivos opostos milhares de famílias nordestinas amargam suas bocas por falta de água e de comida. Nas grandes capitais do país tem-se que conviver com longos e irritantes engarrafamentos de automóveis, assaltos constantes, transportes coletivos superlotados, enormes filas nos postos de atendimento de saúde, problemas, problemas e mais problemas. Enquanto isso, na suposta Casa do Povo, no Congresso Nacional, indivíduos que foram eleitos e são pagos pelo povo, tentam implantar a "lei" do toma lá, dá cá, para ocupar cargos nos ministérios. Totalmente alheios aos graves problemas que enfrenta a população do país, estes "senhores" sem nenhuma cerimônia, liderados pela maior sigla partidária das 39 existentes, coloca à venda o posto adquirido através do voto de milhões de brasileiros!

E eu, do alto de minha condição de cidadã brasileira pergunto:

- Onde estão aqueles grupos de pessoas que há poucos meses atrás acorreram ás redes sociais para mobilizar pessoas contra o aumento das passagens de ônibus, fizeram barricadas, jogaram pedras, soltaram rojões, quebraram boa parte do patrimônio público, usaram máscaras, enfrentaram a sanha policialesca?
O quê estão fazendo hoje? Por quê estão mudos?

Esses políticos que hoje estão preocupados apenas com seus interesse pessoais, estão fazendo o mesmo que fizeram os primeiros colonizadores que aqui chegaram, ainda nos séculos XV e XVI: munidos de apitos, espelhos e bugigangas, e aproveitando-se da inocência e inexperiência trocaram com os índios nossas terras férteis e todas as nossas riquezas minerais!

Qual o resultado concreto daquelas manifestações? A quem beneficiou?

12/03/2014

Vicente Huidobro

 
 



ARTE POÉTICA

Que el verso sea como una llave
Que abra mil puertas.
Una hoja cae; algo pasa volando;
Cuanto miren los ojos creado sea,
Y el alma del oyente quede temblando.

Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra;
El adjetivo, cuando no da vida, mata.

Estamos en el ciclo de los nervios.
El músculo cuelga,
Como recuerdo, en los museos;
Mas no por eso tenemos menos fuerza:
El vigor verdadero
Reside en la cabeza.

Por qué cantáis la rosa, ¡oh Poetas!
Hacedla florecer en el poema ;

Sólo para nosotros
Viven todas las cosas bajo el Sol.

El Poeta es un pequeño Dios.

 Chile, 1893-1947
 
 
Arte Poética
 
 
Que o verso seja como uma chave
que abra mil portas.
Uma folha cai, algo passa voando
Quanto fitam os olhos criado seja
e a alma de quem ouve fique tremendo
 
Inventa mundos novos
e cultiva a palavra.
O adjetivo quando não dá vida, mata.
 
Estamos no ciclo dos nervos
o músculo pende
como lembrança nos museus.
Mas nem por isso temos menos força.
O vigor verdadeiro reside na cabeça.
 
Por que cantais a rosa, ó Poetas?
Fazei-a florescer no poema.
Somente para nós
vivem as coisas sob o sol.
 
O poeta é um pequeno deus. 

10/03/2014

Pizzaria Google & Facebook



- Pizzaria Google & Face Book,  boa noite!
– De onde falam?
- Pizzaria Google & FaceBook,  Senhor. Qual é o seu pedido?
- Mas este telefone não era da Pizzaria do...
- Sim, Senhor, mas a Google & FaceBook compraram a Pizzaria e agora
sua pizza é mais completa.
- OK. Você pode anotar o meu pedido, por favor?
- Pois não. O Senhor vai querer a de sempre?
- A de sempre? Você me conhece?
- Temos um identificador de chamadas em nosso banco de dados, Senhor. Pelo que temos registrado aqui, nas últimas 53 vezes que ligou, o Senhor pediu meia quatro queijos e meia calabresa.
- Puxa, eu nem tinha notado! Vou querer esta mesmo...
- Senhor, posso dar uma sugestão?
- Claro que sim. Tem alguma pizza nova no cardápio?
- Não, Senhor. Nosso cardápio é bem completo, mas eu gostaria de sugerir-lhe meia ricota, meia rúcula.
- Ricota ??? Rúcula ??? Você ficou louco? Eu odeio estas coisas!
- Mas, senhor, faz bem para a sua saúde. Além disso, seu
colesterol não anda bom...
- Como você sabe?
- Nossa Pizzaria tem o banco de dados mais completo do planeta. Nós temos o banco de dados do laboratório em que o senhor faz exames também. Cruzamos seu número de telefone com seu nome e temos o resultado dos seus exames de colesterol. Achamos que uma pizza de rúcula e ricota seria melhor para sua saúde.
- Eu não quero pizza de queijo sem gosto e nem pizza de salada. Por isso tomo meu remédio para colesterol e como o que eu quiser...
- Senhor, me desculpe, mas acho que o senhor não tem tomado seu remédio ultimamente.
- Como sabe? Vocês estão me vigiando o tempo todo?
- Temos o banco de dados das farmácias da cidade. A última vez que o Senhor comprou seu remédio para Colesterol foi há 3 meses. A caixa tem 30 comprimidos.
- P&*%! É verdade! Como vocês sabem disto?
- Pelo seu cartão de crédito...
- Como?!?!?
- O Senhor tem o hábito de comprar remédios em uma farmácia que lhe dá desconto se pagar com cartão de crédito da loja. E ainda parcela em 3 vezes sem acréscimo...Nós temos o banco de dados de gastos com cartão na farmácia. Há 2 meses o senhor não compra nada lá, mas continua usando seu cartão de crédito em outras lojas, o que significa que não o perdeu, apenas deixou de comprar remédios.
- E eu não posso ter pago em dinheiro? Agora te peguei...
- O Senhor não deve ter pago em dinheiro, pois faz saques semanais de R$ 250,00 para sua empregada doméstica. Não sobra dinheiro para comprar remédios. O restante o Senhor paga com cartão de crédito.
- Como você sabe que eu tenho empregada e quanto ela ganha?
- O senhor paga o INSS dela mensalmente com uma Guia de Previdência Social e pelo valor do recolhimento, dá para concluir que ela ganha R$ 724,00 por mês. .
- ORA, VÁ SE DANAR !
- Sim, Senhor, me desculpe, mas está tudo em minha tela. Tenho o dever de ajudá-lo. Acho, inclusive, que o Senhor deveria remarcar a consulta que o senhor faltou com seu médico, levar os exames que fez no mês passado e pedir uma nova receita do remédio.
- Por que você não vai à m#@&*???
- Desculpe-me novamente, Senhor....
- ESTOU FARTO DESTAS DESCULPAS. ESTOU FARTO DA INTERNET, DE COMPUTADORES, DO SÉCULO XXI, DA FALTA DE PRIVACIDADE, DOS BANCOS DE DADOS E DESTE PAÍS...
- Mas, Senhor...
- CALE-SE! VOU ME MUDAR DESTE PAÍS PARA BEM LONGE. VOU PARA AS ILHAS FIJI OU ALGUM LUGAR QUE NÃO TENHA INTERNET, TELEFONE, COMPUTADORES E GENTE ME VIGIANDO O TEMPO TODO!...
- Sim, Senhor...entendo perfeitamente...
- É ISTO MESMO! VOU ARRUMAR MINHAS MALAS AGORA E AMANHÃ MESMO VOU SUMIR DESTA CIDADE.
- Entendo...
- - VOU USAR MEU CARTÃO DE CRÉDITO PELA ÚLTIMA VEZ E COMPRAR UMA PASSAGEM SÓ DE IDA PARA ALGUM LUGAR BEM LONGE DE VOCÊ !!!
- Perfeitamente...
- E QUERO QUE VOCÊ ME ESQUEÇA!
- Farei isto, Senhor... ...
E PODE CANCELAR MINHA PIZZA.
- Perfeitamente. Está cancelada... só mais uma coisa, Senhor...
- O QUE É AGORA?
- Devo lhe informar uma coisa importante...
- FALA, CACETE!!!....
- O seu passaporte está vencido....

06/03/2014

"O louco dos livros"


Albrecht Dürer


No primeiro século da era cristã, o filósofo latino Sêneca denunciava o acúmulo exibicionista de livros:
"Muita gente sem educação escolar usa livros não como instrumento de estudo, mas como decoração para a sala de jantar".  Em 1509, o humanista Geiler von Kaysersberg afirmava que:  "Aquele que quer livros para ganhar fama deve aprender algo com eles;  não deve armazená-los em sua biblioteca, mas na cabeça. Mas este primeiro louco pôs seus livros em correntes e fez deles prisioneiro;  se pudessem se libertar e falar (os livros),  arrastariam-no até o juiz,  exigindo que ele,  e não eles,  fosse encarcerado".
Na Grécia, em Roma e Bizâncio, o poeta erudito - o doctus poeta,  representado segurando uma tabuleta ou um rolo - foi considerado um modelo,  mas esse papel estava destinado aos mortais.  Os deuses jamais se ocupavam de literatura; as divindades  gregas e   latinas jamais eram mostradas segurando um livro.  O cristianismo foi a primeira religião a por um livro nas mãos de seu deus e, a partir da metade do século XIV, o livro emblemático cristão passou a ser acompanhado por outra imagem - a dos óculos.
 
 
Alberto Manguel em Uma História da Leitura

01/03/2014

Carnelevarium, ou o adeus à carne!

Rio de Janeiro, 1954



O carnaval é uma festa que remonta à Antiguidade. Acredita-se que as primeiras referências que se tem notícia estejam ligadas às festas agrárias, que aconteciam com a chegada da primavera. Após um longo período de recolhimento para se protegerem do frio, as pessoas (pasmem!) saíam das cavernas para comemorar a chegada do sol. Era a época da colheita e do plantio e todos cantavam e dançavam para espantar os "maus espíritos". Em Roma, havia as Saturnálias, festa que homenageava Saturno, o deus da agricultura. Segundo a lenda, Saturno pregava a igualdade entre os homens e defendia a humanização dos deuses. Talvez por isso tenha sido expulso do Olimpo. Durante as Saturnálias os escravos assumiam o lugar dos senhores da aristocracia, os tribunais e as escolas não funcionavam, todas convenções sociais eram abolidas, e eles podiam cantar, dançar e até fazer pilhérias com os senhores. Tudo era permitido. Por volta do século XVI os portugueses começaram a praticar o "entrudo", brincadeiras que variavam de um lugar para outro; confeccionavam grandes bonecos de pano e lançavam entre si os "limões de cheiro"(pequenas bolas de cera com água perfumada em seu interior), costume oriundo de Paris. A partir do século XIX começaram a aparecer no Rio de Janeiro duas categorias de "entrudo": o familiar e o popular. O primeiro, acontecia nas casas dos senhores dos principais centros urbanos e consistia em lançar os "limões" entre si, num clima de descontração e como uma forma de estreitar os relacionamentos. Muitos escravos os vendiam em tabuleiros nas ruas do Rio antigo. Já o "entrudo popular" era praticado pelo povão e pelos escravos; ao contrário do "familiar", era recheado de qualquer tipo de líquido, contendo às vezes urina ou sêmen. A partir de 1830, a igreja deu início a uma campanha para acabar com esse tipo de brincadeira, mas suas tentativas foram infrutíferas. Ainda hoje podemos encontrar em várias cidades esse tipo de brincadeira, inclusive nos carnavais de Recife e Olinda("mela-mela"), em Salvador("pipoca") e em muitas cidades do interior. No final do século XIX já passamos a encontrar uma certa organização de grupos carnavalescos chamados de "cordões", "ranchos" ou "blocos", que ocupavam as ruas do Rio de Janeiro, servindo de modelo para o resto do Brasil. Em 1890 a compositora Chiquinha Gonzaga escreveu a primeira música para o carnaval , a marchinha "Ô Abre Alas!", para o cordão "Rosas de Ouro". Os foliões, como eram chamados, frequentavam os bailes fantasiados, usando máscaras e disfarces inspirados nos bailes de máscaras parisienses. Atualmente, no Rio, em São Paulo e em muitas cidades brasileiras, as escolas de samba fazem desfiles organizados, criando uma acirrada disputa para a escolha da melhor escola do ano. Existe uma verdadeira indústria do carnaval e muita gente trabalha o ano inteiro pra juntar dinheiro, comprar sua fantasia e desfilar numa escola de samba. É o seu sonho de consumo. A maioria das escolas convida estrelas da televisão para desfilarem, na tentativa de ganhar pontos para serem classificadas. Hoje o carnaval é muito mais um espetáculo televisivo do que aquela brincadeira de outrora.
 O carnem levare ou carnelevarium, palavra latina que significa "adeus à carne", há muito tempo perdeu este sentido. Tratava-se de uma alusão a abstinência de carne logo após os 4 dias de festa. Durante 40 dias a igreja determinava que os cristãos estavam proibidos de consumir carne. Era a quaresma ! Fora do eixo Rio-São Paulo, ainda encontramos um carnaval que foge a esse padrão de escola de samba; em cidades como Recife e Olinda as pessoas saem às ruas para dançar em blocos, em ritmo do frevo e do maracatu. Em Salvador existem os trios elétricos(grandes carros equipados com alta tecnologia musical), com músicas dançantes de cantores e grupos da região.

Não fosse tanta violência..., o carnaval só me deixou saudades!!!