DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/07/2014

Um poema para se comer e pensar

 


ANTIGUIDADES
 
 
Quando eu era menina bem pequena,
em nossa casa, certos dias da semana se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico, como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente. Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha governava.
 Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada..
. E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro, quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado, num armário,
 alto, fechado, impossível.
Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido assim,
sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
 certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
 usava e abusava
de pretensos direitos de educação.
Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas não faltavam.
Quando não, sentada no canto
 de castigo fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga, passadiça,
 era assim: severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !... As visitas...
Como eram queridas, recebidas,
 estimadas, conceituadas, agradadas !
Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas que davam sono.
Antiguidades...
Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim. D. Milécia,
sempre às voltas com receitas de bolo,
 assuntos de licores e pudins.
 D. Benedita com sua filha Lili. D. Benedita
 - alta, magrinha. Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves, Saninha de Bili, Sá Mônica
. Gente do Cônego, Padre Pio. D. Joaquina Amâncio.
.. Dessa então me lembro bem. Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa, como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme, minha bisavó.
D. Joaquina era uma velha grossa,
 rombuda, aparatosa.
Esquisita. Demorona. Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro no pescoço.
Anéis pelos dedos. Bichas nas orelhas
. Pitava na palha. Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava contando "causos"
 infindáveis, dormia estirado no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia, vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
 cheio de grandes bolos ao meu alcance.
De manhã cedo quando acordava, estremunhada,
com a boca amarga, - ai de mim
 - via com tristeza, sobre a mesa: xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.
 

Cora Coralina

4 comentários:

  1. Mas que lindo, amiga! Sabes que era assim mesmo quando eu era criança lá na aldeia onde eu nasci? Tudo era escasso naqueles tempos e o melhor era guardado para uma visita sempre imprevista. Não havia telefones para que se avisasse. Ai de nós se atrapalhassemos as visitas ou aparecessemos na sala. No fim, se sobrasse alguma bolachita, aí, sim, podiamos comer. O pior era quando não sobrava nada!!!! Beijinhos e obrigada por este momento que me fez voltar ao passado.. Fica bem!
    Emília

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  2. Bolos da infância, fatias controladas, e a boca nos olhos, enorme!

    Beijos, Ci. Ando devagar, mas nunca tive pressa como ando tendo. Mas ausente, ausente, que ando. Saudades.

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  3. ESTE TEXTO ME HIZO SONREÍR. MUY BELLA EVOCACIÓN.
    UN ABRAZO

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  4. Esse poema é demais! Só poderia ser da Cora Coralina, essa admirável escritora goiana. Ci, um bom fim de semana pra você!Bjsss

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