A noite está quente, a noite é longa, a noite é magnífica para ouvir histórias, disse o homem que veio sentar-se ao meu lado no muro do pedestal da estátua
de D. José. Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole,
com alguma coisa de sensual e de mágico (...), o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento, eu olhei
para o meu interlocutor, era um vagabundo magro com uns sapatos de tênis e
uma camisola amarela, tinha a barba comprida e era quase careca, devia ter a minha idade ou um pouco mais, ele olhou para mim e levantou o braço num
gesto teatral. Esta é a lua dos poetas e dos contistas, esta é uma noite ideal para ouvir histórias, e para contar também, não quer ouvir uma história? (...)
O homem cruzou as pernas e apoiou o queixo nas mãos com ar meditabundo e disse: precisamos sempre de uma história mesmo parecendo que não. Mas por
que é que você quer me contar uma história?, perguntei, não estou a perceber.
Porque eu vendo histórias, disse ele, sou um vendedor de histórias, é a minha profissão, vendo as histórias que eu próprio invento.
[...]
O vendedor de histórias fez uma pequena pausa e repetiu o seu gesto teatral
com o braço, como se quisesse apanhar a lua. E então?, perguntei. Então, disse
ele, a certa altura pensei que devia escrever as histórias que me vinham visitar,
e assim escrevi dez histórias, uma trágica, uma cômica, uma tragicômica, uma
dramática, uma sentimental, uma irônica, uma cínica, uma satírica, uma fantástica e uma realista, e levei o maço de folhas a uma editora. Encontrei lá
o diretor literário da editora, um senhor muito desportivo que usava jeans e
mastigava chiclete. Ele disse que ía ler tudo, que voltasse lá daí a uma semana.
Voltei uma semana depois e o diretor literário da editora disse-me: Vê-se que
o senhor nunca leu o minimalismo americano, lamento, mas infelizmente falta-
lhe ter lido o minimalismo americano. Eu não me quis dar por vencido e fui a
outra editora. Aí estava uma senhora muito elegante com um lenço ao pescoço,
ela também me pediu para eu voltar daí a uma semana e eu voltei. O senhor tem demasiado plot nas suas histórias, disse-me a senhora elegante, vê-se
perfeitamente que não leu as vanguardas, as vanguardas deram cabo do plot,
meu caro senhor, fazer plot agora é retaguarda. Eu não me quis dar por vencido
e fui a uma terceira editora. (...)Ele pediu-me para eu voltar daí a uma semana e eu voltei. Você não faz ideia do que é o pragma, disse-me o senhor muito
sério, a sua realidade está completamente desintegrada, você precisa é de um psiquiatra. Eu saí e comecei a vaguear pela cidade. O meu consultório estava fechado, já ninguém lá ía, eu estava triste e sem dinheiro, triste sim, mas com uma imensa vontade contar as minhas histórias às pessoas, e assim, comecei a caminhar e pensei: bom, se eu tenho tantas histórias para contar é capaz de haver gente com vontade de as ouvir, a cidade é grande, e assim comecei a
circular pela cidade e a contar histórias, e agora é assim que ganho a minha vida.
Trechos do livro Requiem uma alucinação, do escritor italiano Antônio Tabucchi, (Vecchiano, 1943-Lisboa, 2012) autor de Noturno indiano, Afirma Pereira, O tempo envelhece depressa, entre outros.
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