DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/01/2017

Machado de Assis: por um cálice de poder relativo

Rua da Carioca, séc. XIX

 
 
Como é possível que hoje, amanhã ou depois, tornem a falar em crise ministerial, venho sugerir aos meus amigos um pequeno obséquio. Refiro-me
à inclusão de meu nome nas listas de ministérios, que é de costume publicar
anonimamente, com endereço ao imperador.
Há de parecer esquisito que eu, até aqui pacato, solicite uma fineza destas que
tresclara a pura ambição. Explico-me com duas palavras e deixo de lado outras
duas que também podiam ter muito valor, mas que não são a causa do meu pedido.
Na verdade, eu podia comparar a ambição às flores, que primeiro abotoam e
depois desabrocham; podia dizer que, até aqui, andava abotoado. Por outro
lado, se a ambição é como as flores, por que não será como as batatas, que
são comida de toda a gente? E também eu não sou gente? Não sou filho de
Deus? Nos tempos de carestia, a ambição chega a poucos, César ou Sila? Mas
nos períodos de abundância estende-se a todos, a Balbino e a Maximino*. Façam de conta que sou Balbino.
Mas não quero dar nenhuma dessas razões, que não são as verdadeiras causas
do meu pedido. Vou ser franco, vou abrir a minha alma ao sol da nossa bela América.
A primeira coisa é toda subjetiva; é para ter o gosto de reter o meu nome impresso, entre outros seis, para ministro de Estado. Ministro de quê? De qualquer coisa; contanto que o meu nome figure, importa pouco a designação.
Ainda que fosse de verdade, eu não faria questão de pastas, quanto mais não
sendo. Quero só o gosto; é só para ler de manhã, sete ou oito vezes, e andar
com a folha no bolso, tirá-la de quando em quando, e ler para mim, e saborear
comigo o prazer de ver o meu nome designado para governar.
Agora a segunda coisa, que é menos recôndita. Tenho alguns parentes, vizinhos
e amigos, uns na Corte e outros no interior, e desejava que eles lessem o meu nome nas listas ministeriais, pela importância que isso me daria. Creia o leitor
que só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce. Eu, por exemplo, que nunca
alcancei dar certa expressão ao meu estilo, pode ser que a tivesse daí em diante; expressão no estilo e olhos azuis na casa. Tudo isso por uma lista anônima, assinada - Um brasileiro ou A Pátria.
 Não me digam que posso fazer eu mesmo a coisa e mandá-la imprimir, como
se fosse de outra pessoa. Pensam que não me lembrei disso? Lembrei-me;mas
recuei diante de uma dificuldade grave.
Compreende-se que uma coisa destas só pode ser arranjada em segredo, para
não perder o merecimento da lembrança. Realmente, sendo a lembrança do próprio lembrado, lá se vai todo o efeito; para ficar em segredo, era preciso antes de tudo disfarçar a letra, coisa que nuca pude alcançar; e, se uma só pessoa descobrisse a história e divulgasse a notícia, estava eu perdido. Perdido
é modo de falar. Ninguém se perde neste mundo, nem Balbino, nem Maximino.
Eia, venha de lá esse obséquio! Que diabo, custa pouco e rende muito, porque
a gratidão de um coração honesto é moeda preciosíssima. Mas pode render ainda mais. Sim, suponhamos, não digo que aconteça assim mesmo; mas suponhamos que o imperador, ao ler o meu nome, diga consigo que bem podia experimentar os meus talentos políticos e administrativos e inclua o meu nome no novo gabinete. Pelo amor de Deus, não me atribuam a afirmação de um tal
caso; digo só que pode acontecer. E pergunto, dado que assim seja, se não é
melhor ter no ministério um amigo, antes do que um inimigo ou um indiferente?
Não cobiço tanto; contento-me com ser lembrado. Terei sido ministro relativamente. Há muitos anos, ouvi uma comédia, em que um furriel** convidava a outro furriel para beber champagne.
- Champagne! Exclamou o convidado. Pois tu já bebeste alguma vez champagne?
- Tenho bebido...relativamente. Ouço dizer ao capitão que o major costuma bebê-lo em casa do coronel.
Não peço outra coisa; um cálice de poder relativo.

Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu no Rio de Janeiro (1839-1908). Foi jornalista, contista (escreveu mais de 200 contos), cronista (mais de 600 crônicas), poeta, romancista e teatrólogo. Foi o fundador da Academia Brasileira de Letras. A crônica acima foi escrita em 20 de abril de 1885.

* Imperadores romanos do início da era cristã.
** furriel era o penúltimo cargo na hierarquia militar do exército no período em que o Brasil foi colônia de Portugal.

  

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