A glória das letras só a tem quem a elas se dá inteiramente;
QUERIA EVITAR, MAS ME VEJO OBRIGADO A FALAR NA literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados para tratar, do qual não
me sinto completamente habilitado.
Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas coisas primordiais: ideias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dois séculos ou três.
Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito. [...]
Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.;
mas todo esse folclore não tem sido coligido e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso comunicar. [...]
O que caracteriza a literatura daquele país é uma curiosa escola literária lá conhecida por "Escola Samoieda".
Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo "caracteriza", porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das coisas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das coisas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra coisa pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional que elas exigem em troca. A glória das letras só a tem quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém. por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com politiquices e passes de mágica intelectuais.
Lima Barreto (Afonso Henriques de) nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e faleceu em 1922 aos 44 anos. É autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, Histórias e sonhos, Marginália, Feiras e Maferás, Bagatelas, e Clara dos Anjos.
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