DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/04/2017

Na escuridão miserável



 
 
Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico.* Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me
e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada,
raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não
teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:
- O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente, pensando tratar-se de esmola.
- Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.
- O que é que você está me olhando aí?
- Nada não senhor - repetiu. - Tou esperando o ônibus...
- Onde é que você mora?
- Na Praia do Pinto.
- Vou para aquele lado. Quer uma carona?
Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta.
- Entra aí, que eu te levo.
Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ía olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:
- Como é o seu nome?
- Teresa.
- Quantos anos você tem, Teresa?
- Dez.
- E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?
- A casa da minha patroa é ali.
- Patroa? Que patroa?
Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia a mesa. Entrava às sete
da manhã, saía às oito da noite.
- Hoje saí mais cedo. Foi jantarado
- Você já jantou?
- Não. Eu almocei.
- Você não almoça todo dia?
- Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim.
- E quando não tem?
- Quando não tem, não tem - e ela parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava
no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês:
- Mas não te dão comida lá? - perguntei, revoltado.
- Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse pra eu não pedir.
- E quanto é que você ganha?
Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma ninharia, não mais que alguns trocados. Meu impulso
era voltar, bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.
- Como é que você foi para na casa dessa...foi parar nessa casa? - perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar:
- Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí noutro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, obrigado.
Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto.
 
Fernando Sabino, nasceu em Belo Horizonte(MG) em 1923 e faleceu no Rio de Janeiro em 2004. Escreveu contos crônicas e romances. É autor de O grande mentecapto, O encontro marcado, O menino no espelho, entre outros

O Jardim Botânico é um bairro situado na zona sul do Rio de Janeiro; a Praia do Pinto fica no bairro Leblon, também na zona sul.  

Um comentário:

  1. Hay miles de historias como ésta en muchas partes del mundo. Reales, dolientes, que no puedo digerir.

    No comprendo como alguien que lo tiene todo puede aprovecharse de alguien que no tiene nada y mucho menos si ese alguien es un menor, pero todos sabemos que ocurre.

    La historia está contada de una manera deliciosa, pese a su contenido. Disfruté del relato.

    Un montón de besos,

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