Tartarugando pelos cantos escuros da Terra pressinto o seu ranger de dentes; escuto um batuque de tambores ancestrais, ritmado pela cadência da pisada de um rinoceronte enfurecido e faminto.
Tartarugando pelos cantos escuros da Terra pressinto o seu ranger de dentes; escuto um batuque de tambores ancestrais, ritmado pela cadência da pisada de um rinoceronte enfurecido e faminto.
Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? - Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques e taques dos dias e noites das noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas que doravante não será fácil atribuir um sentido propriamente literário a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos de fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler.
Pensou que tinha sonhado. Voou...Sonhou que tinha sonhado e pensou: será que estou voando? Quando acordou teve a nítida sensação de ainda estar nas alturas. Levantou-se e começou a flutuar agachada ao lápis que estava preso nas asas do vento, e era um vento tão forte que seu pensamento disparou criando milhares de lápis, como se fossem moscas vistas de longe, com aquele zunido infernal que fazem os microventiladores. De repente a porta bateu o telefone tocou o vento parou. Teria sonhado?
Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo? O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão. Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua. Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" - mas não o fiz para não entristecer o homem. Espero que uma velhice tranquila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios - me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso, pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama, a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?) Alguém já me escreveu também - que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação - contra a língua." Mas acho que isso é exagero. Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Espero que nunca na minha vida, tenha escardinchado ninguém, se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção. Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar. Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairel, caireta, cairota ou cariri - e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas de Última Hora ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de O Globo? No fundo, o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros. Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo de póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente - de Cachoeiro de Itapemirim!
Rio, 1959
* Rubem Braga (Cachoeiro de Itapemirim-ES/ 1913-1990).
Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível.
Jacques Derrida
Tupi ou não tupi, eis uma questão a ser decifrada pela Esfinge. Mas, o que ela quer, há milênios, é nos devorar: - senão, senão morrerão de fome. - Não acreditam? Olhem em volta, e poderão verificar a realidade se transformando em ficção e vice-versa: mentiras, factoides, disseminação de versões distorcidas....
Tratados, compêndios de teses e antíteses abordam abundantemente velhas roupas desbotadas 'à la recherche du temps perdu', um passado que não mais voltará.
Ela e o Sol se levantavam ao mesmo tempo. Ao
cruzar a soleira da porta amalgamaram-se. E o dia
nasceu!
Ela está com um lápis na mão pensando. Pensando no lápis ela escreve alguma coisa, e para subitamente. O pensamento voa enquanto o lápis permanece imóvel aguardando o pouso.
O dia corre com os loucos: querem alcançar a velocidade da luz? Os loucos filhos do dia já apresentam sinais de cansaço. Com as línguas de fora querem falar outras, de mundos diferentes.
Sobre a relva do campo dança a musa de Aristóteles. O velho filósofo volta a cabeça a todo instante, e contempla por algum tempo o corpo juvenil e nacarado. Suas mãos deixam cair no chão o rolo farfalhante do papiro, enquanto o sangue impulsivo e ardente corre-lhe pelo corpo combalido. A musa continua dançando no prado e diante dos seus olhos ela desenvolve um tema complexo de linhas e ritmos.
Aristóteles pensa no corpo de uma moça, uma escrava do mercado de Estagira, que ele não pôde comprar. Também recorda que desde então nenhuma outra mulher turvou sua mente. Agora, porém, quando seus ombros se curvam com o peso da idade e os olhos começam a encher-se de sombras, a musa Harmonia vem tirar-lhe o sossego. Em vão contrapõe à sua beleza as meditações frias: ela retorna sempre e recomeça a dança sutil e envolvente. De nada adianta Aristóteles fechar a janela e iluminar a escrita com uma lâmpada fraca de azeite. Harmonia continua a dançar no seu cérebro e desvia o curso sereno do pensamento, que se mescla de luz e sombra como a água revôlta.
As palavras que escreve perdem a gravidade tranquila da prosa dialética e se encantam em iambos sonoros. Refluem-lhe à memória, como as asas de um vento recôndito, as ressonâncias de sua linguagem juvenil, fortes, impregnadas de aromas campestres.
Aristóteles deixa o trabalho e sai para o jardim, aberto como uma grande flor que o dia primaveril enche de esplendores. Aspira fundo o perfume das rosas, banha o velho rosto na frescura da água matinal.
A musa Harmonia dança à sua frente, fazendo e desfazendo um friso interminável, um labirinto de formas fugitivas onde a razão se transvia. De repente, com uma agilidade inesperada, Aristóteles começa a perseguir a mulher, que foge, quase alada, e se perde no bosque.
O filósofo retorna à cela, extenuado, triste. Apoia a cabeça nas mãos e chora em silêncio a perda dos dons da juventude. Quando olha novamente pela janela, a musa recomeça a dança interrompida. Aristóteles toma a resolução súbita de escrever um tratado que destrua a dança de Harmonia, decompondo-a em todas a suas posições e ritmos. Humilhado, aceita o verso como uma condição inelutável, e se põe a escrever sua obra-prima, o tratado Da Harmonia, que foi queimado na fogueira de Omar.
Durante o tempo que levou na elaboração, a musa dançava para ele. Ao lançar o último verso, a visão desapareceu e a alma do filósofo repousou afinal, livre do agudo aguilhão da beleza.
Mas, uma noite, Aristóteles sonhou que andava de quatro pés pela relva, sob a primavera grega, com a musa montada sobre seu dorso. No dia seguinte grafou estas palavras na abertura do manuscrito: Meus versos são deselegantes como a andadura do asno. Sobre eles, porém, cavalga a Harmonia.
Juan Jose Arreola, México (1918-2001) em
Confabulário Total.
Letras palavras verbos frases escorrem entre pernas indo se acomodar empilhadas sobre os pés. Letras palavras verbos rasgados esparram-se em vozes dissonantes: pernas e pés correm pelas galerias de nobres salões verdes-amarelos de fome e de vergonha.
Nada é mais deplorável e digno de lástima - dizem os ladrões - do que o gesto de um homem surpreendido em flagrante delito contra a propriedade. Treme, balbucia, levanta pesadamente as mãos, agitando-as no como se estivessem vazias. Declara afinal, que não apanhou nada, que tudo é mentira, que se trata sem dúvida de um engano constrangedor.
Na realidade, é muito difícil reconhecer os próprios erros, e ninguém entrega com prazer o que lhe pertence. Os ladrões, sempre inclinados à fraqueza, sentem um aperto no coração e acabam por levar alguma coisa contra a vontade do dono. Correm graves riscos os que tentam roubar sem o auxílio de um revólver, pois os proprietários os insultam e terminam por tomar a ofensiva. Frequentemente, os jornais nos informam sobre algum imprudente que foi ferido, impunemente, enquanto fugia com as mãos vazias. Entretanto, dizem os ladrões, de vez em quando conseguem encontrar algumas almas arrependidas que devolvem tudo o que têm em demasia, e que acolhem a visita noturna solenemente, como um fato providencial.
* Juan Jose Arreola, Jalisco (México) - 1918-2001
em Confabulário Total [1941-1961]
Por conseguinte, estaria sozinha?
E lá no alto viu um céu coberto de ruas e avenidas e
uma enorme cratera que era sua boca(do céu ou
dela?)cheia de dentes afiados, e ameaçadores e brancos como as nuvens.
Uma voz rouca e tonitruante uivava puxando os
cabelos(de quem?)
Quantos personagens voaram como pássaros cegos
numa noite escura sobre a cidade coberta de densas
nuvens prenunciadoras de ventos devastadores;
quantos se perderam pelos caminhos entre ruínas, palavras ardendo, em chamas, gritos seculares
irrompendo do silêncio entre as pedras.
Quantos relatos vãos? Para onde? Para quem?
Parou de ler o relato no ponto em que um personagem
parava de ler o relato no lugar onde um personagem
parava de ler e se dirigia à casa onde alguém que o
esperava tinha começado a ler um relato para matar o
tempo e chegava ao lugar onde um personagem
parava de ler e se dirigia à casa onde alguém que o
esperava tinha começado a ler um relato para matar o
tempo.
Julio Cortázar, em Papéis Inesperados, uma coletânea de textos inéditos e dispersos, escritos pelo autor ao longo de sua vida, e publicados em 2009, vinte e cinco anos após sua morte.
Bem que podia escrever alguma coisa, mas o que é
alguma coisa?
Mesmo sem saber bem sobre o quê, sobre quem ou
ou tal e qual e etecétera e tal, porque "ao fim e ao
cabo", como dizem atualmente, (virou moda?) é tudo
igual mesmo pondo e tirando do lugar.
Nada está no mesmo lugar ou tudo ou quase tudo está
fora-de-lugar, fora-da-lei que nem nos tempos idos e
sofridos dos reis onde reinava o "cala a boca", o
calabouço.
Parece até que foi ontem...foi? Não foi? Ah! Tá tão
recente...mas tem gente que nem se lembra mais ou
faz de conta que; outros nunca ouviram falar sobre....
Não sei se é refluxo ou reflexo de um antigo fluxo sem
nexo nem amplexo pros dias e noites de hoje em dia...
pois já lá se vão muitos desvios e desvãos entre tantos
devaneios alheios a certos interesses, ou quem sabe...
alhures, sem nenhum parentesco à vista ou a prazo...
sem nenhuma terra achada nos cais, nos aeroportos e
rodoviárias desse nosso país...!? "Quem acha vive se
perdendo", como dizia o poeta Agenor, que de sua
Cartola nos deixou um legado de lindas pérolas para o
nosso cancioneiro popular. Entre achados e perdidos
mortos e feridos, vamos endoscopiando em busca de
alguns pólipos, a ver se saudáveis ou malignos, para
mantê-los ou extirpá-los.
"Papel , amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia.
Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que
eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem
depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, po -
dem cuidar que te confio cuidados de amor.
Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha
mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a
rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que podes
achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele
chegue. virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios."
Machado de Assis em Memorial de Aires.
O HOMEM no meio da escada hesitava há vários dias entre subir e descer.
Os anos passavam e o homem continuava a hesitar: subo ou desço?
Até que certo dia a escada caiu.
GOÇALO M. TAVARES, em O senhor Brecht
A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se aí sonos deleitosos.
Casos há em que se podem roubar milhares de contos de réis...e acordar
com eles na mão.
Vaca e dinheiro são, como se sabe, expressões correlatas; diz-se vaca
do orçamento; diz-se também: o pelintra meteu a boca na teta, quando
se quer deprimir alguém, que andou mais depressa que nós, etc.
Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não compres mal os outros,
corrompe e sê corrompido, mas não te esqueças do dinheiro, que é com
ele que se compram os melões. Mete dinheiro no bolso.
* Pequenos trechos de crônicas escritas por Machado de Assis, da série
"Balas de Estalo" (ao todo foram 126), entre 1883-1886, publicadas no
jornal A Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.
Beatriz Milhazes
O poema é um animal;
nenhum poema se destina ao leitor;
ou, como um quadro, assume o poder dos feitiços, objectos mágicos ou
instrumentos de esconjurar os espíritos, ou a emoção, ou o
inconsciente,
guardando o homem de uma oculta dependência de tudo;
porque se vive dos lucros da superstição;
e é forçoso existir a natureza, outorgada às nossas violações;
ou que as regras de organização do poema são as mesmas da natureza,
mas os elementos com que o poema se organiza não estão na natureza;
e o poema não transcreve o mundo, mas é rival do mundo.
São casas de Aristóteles, Benjamin, Picasso, Huidobro, Malraux.
Casas para onde se entra e de onde se sai, por portas travessas ou
janelas, por telhados e escadas derradeiras, pela frente, abrindo túneis
nas caves, escrevendo torto em linhas direitas, ateando fogos, pelas
traseiras.
Extraído de PHOTOMATON & VOX, de Herberto Helder, Funchal (Ilha da
Madeira), 1930-2015.
Ana Hatherly
Como a senhora pôde ser tão desatenta ao ler o último capítulo, madame? Nele eu já dissera que minha mãe não era papista - Papista! Perdoe-me, mas o senhor não afirmou nada disso. Madame, com sua licença, repito mais uma vez que o afirmei de modo claro, ao menos tão claro quanto as palavras, por inferência direta, são capazes de comunicar. - Senhor, neste caso devo haver pulado uma página. - Não, madame, a senhor não pulou sequer uma palavra. - Então eu cochilei, senhor. - Madame, meu orgulho não lhe faculta esse refúgio. - Pois bem, declaro, então, que nada sei a esse respeito. - Madame, eis a falta que lhe imputo; e, à guisa de castigo, insisto que a senhora volte imediatamente, ou melhor, assim que chegar ao próximo ponto final, releia todo o capítulo.
Impus essa penitência à senhora não por capricho nem por crueldade, mas com a melhor das intenções; de modo que não pedirei desculpas quando ela retornar: - foi para censurar um hábito mui prejudicial que aflige milhares de outras pessoas - o de ler sempre em frente, mais em busca das aventuras do que da profunda erudição e conhecimento que um livro desta casta, se lido da forma adequada, haveria sem dúvida de propiciar.
*Laurence Sterne (Clonmem, Irlanda- 1713-1768) em A vida e as opiniões do cavaleiro Tritram Shandy
Soneto 123
De me fazer mudar, não te gabes, ó Tempo.
As pirâmides que de novo construíste
para mim nada têm de novo nem de estranho;
são elas do já visto a imagem disfarçada.
Os dias breves são: deixamo-nos arrebatar
por coisas bem senis, mas dadas como novas, [...]
Desafio a um tempo, a ti e a teus anais:
não me espanta ou me encanta o presente ou o passado;
falsa a tua lembrança e falso o que se vê,
que se aumenta ou reduz por tua presa incessante.
Faço este voto ao qual sempre me apegarei:
Fiel sempre, apesar de ti, de tua foice.
*****
Soneto 77
Ao espelho verás declinar-te a beleza
e a volúvel montra ir-se teu rico tempo;
[...]
As rugas que um sincero espelho mostrará
far-te-ão relembrar a tumba escancarada;
na montra, a hora que foge a ti ensinará
que para a eternidade o tempo a furto avança.
* William Shakespeare - 1564-1616
Tentar desatar os nós de todos nós; os dedos das mãos como crisálidas,
movimentam-se em espirais. até se tornarem espirais, num movimento côncavo-convexo.
Na ponta dos dedos da noite, moldar a argila dos sonhos do dia.
Somos como cascas de árvores que no outono submergem em seu pró-
pio suor para tornar-se o sumo de novas sementes.
Por que és tão breve?
Não amas mais, como outrora, o canto?
Quando jovem, não chegavas, nos dias de esperança,
nunca ao fim, quando cantavas!
Tal qual minha sorte é meu canto -
Queres ao arrebol banhar-te alegremente?
Foi-se! E a terra está fria.
E o pássaro da noite esvoaça
incomodamente aos olhos teus.
* Friedrich Hölderlin - Laufen (Alemanha) 1770-1843
Tradução: Antonio Cícero
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Vai-me apertando amargo, o coração, se penso em como tudo passa e
passa, quase sem deixar rastro.
Giacomo Leopardi - Recanati(Itália) 1798-1837
Dias. Noites sem fim.
Medo paralisante e uma coragem desenfreada mas esmorecida.
Vida e morte bem juntinhas para não perder o costume...
Dias asfixiados e asfixiantes para noites escuras.
Solidão branca, tão solar que cega o entorno; o óbvio beirando o banal,
lugar comum de dois, de milhares, de milhões de ilhas, de arquipélagos
humanos... !
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A noite dissolve os homens
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança...Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o e termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
* Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo