DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/07/2015

Paul Celan, um olhar para além do visível





Desvelado aos portões do sonho
luta, isolado, um olho.
Ainda existirá um olho
de outrem, ao lado
desse nosso: mudo
sob a pálpebra de pedra.
Oh esse olho ébrio
que erra ao redor como nós
e por vezes atônito nos mira.
Ai a escuridão
olhada atenta.
Olhos e boca, tão abertos e vazios, Senhor.
Teu olho, tão cego como a pedra.
Flor - uma palavra de cegos.
Cantos:
vozes dos olhares em coro,
tu estás
onde está teu olho, tu estás
no alto, estás
embaixo, eu
encontro a saída.

26/07/2015

Vai e voa, folha...



 
vai folha vai e voa
com o vento
vai e te perde pelas ruas
da cidade adormecida...
 
vai página esquecida
arranca-te do livro
em branco e vai ser
página escrita
lá pras bandas do infinito
 
vai folha e (me) leva
contigo uns versos
de quem canta pro espelho
traz de volta o retrato
(ainda que em sépia)
que se foi com a aragem
do tempo e ficou só
na imaginação...

23/07/2015

O louco dos livros




No primeiro século da era cristã, o filósofo latino Sêneca denunciava o acúmulo exibicionista de livros: "Muita gente sem educação escolar usa livros não como instrumento de estudo, mas como decoração para a sala de jantar".  Em 1509, o humanista Geiler von Kaysersberg afirmava que: "Aquele que quer livros para ganhar fama deve aprender algo com eles; não deve armazená-los em sua biblioteca, mas na cabeça. Mas este primeiro louco pôs seus livros em correntes e fez deles prisioneiro; se pudessem se libertar e falar (os livros), o arrastariam até o juiz, exigindo que ele, e não eles, fosse encarcerado". Na Grécia, em Roma e Bizâncio, o poeta erudito - o doctus poeta, representado segurando uma tabuleta ou um rolo - foi considerado um modelo, mas esse papel estava destinado aos mortais. Os deuses jamais se ocupavam de literatura; as divindades gregas e latinas jamais eram mostradas segurando um livro. O cristianismo foi a primeira religião a por um livro nas mãos de seu deus e, a partir da metade do século XIV, o livro emblemático cristão passou a ser acompanhado por outra imagem - a dos óculos.


Alberto Manguel em  O Louco dos Livros"

21/07/2015

A palo seco - João Cabral de Melo Neto





Se diz a palo seco o cante sem guitarra;
  o cante sem; o cante; o cante sem mais nada;
se diz a palo seco a esse cante despido:
 ao cante que se canta sob o silêncio a pino.
O cante a palo seco é o cante mais só:
  é cantar num deserto devassado de sol;
  é o mesmo que cantar num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe do que ela mesma ponha. ...
A palo seco existem situações e objetos:
Graciliano Ramos, desenho de arquiteto,
as paredes caiadas, a elegância dos pregos,
 a cidade de Córdoba, o arame dos insetos.
Eis uns poucos exemplos de ser a palo seco,
dos quais se retirar higiene ou conselho:
não de aceitar o seco por resignadamente
, mas de empregar o seco porque é mais contundente.

19/07/2015

Vi apenas uma vez



 
Vi apenas uma vez um sol tão ensanguentado.
E nunca mais.
Descia funesto sobre o horizonte e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei ao observatório astronômico
e hoje sei o porquê.
 
O inferno conhecemos: está em toda parte e caminha sobre duas pernas.
E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso por muito tempo esperado
e lábios a murmurarem o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos do inferno.
 
 
Jaroslav Seifert - Praga(República Tcheca), 1901-1986
 
Tradução de Aleksander Jovanovic

14/07/2015

Caso de jabuti, crônica de Mário de Andrade

 
Inajá, palmeira típica da Amazônia
 
 


Ora não vê que o jabuti estava passeando, no seu pensamento remoendo umas primeiras noções de fome, "não tenho fome, não tenho fome não" ele resmungava baixinho...Isso não era suficiente pra ele se convencer de que não tinha fome, porém a atenção empregada em repetir a frase bem certo, disfarçava a sensação, e jabuti não tinha fome, por esquecimento. Nisto a serapilheira clareou mais e junto dum tronco forte, seu jabuti encontrou uma fruta de inajá. "Eis que tenho fome!" ele falou bem alto, se escutou, sentiu a fome bem, e papou a fruta de inajá.
              Então, meio com desejo de mais, subiu o olhar pelo tronco robusto, e isso era uma palmeira inajá linda, viçosa, carregadinha de fruta. E lá no cocoruto, suspenso facilzinho, estava Ivalecá, seu macaco, se regalando com a cocada inajá, como se aquilo fosse dele, desaforo. Seu jabuti sentiu uma bruta fome, disse:
            - Olá compadre, pincha umas frutinhas prá gente!
            Mas o macaco secundou:
            - Que nada! Suba ocê! Eu não subi? pois suba!
            - Não tem dúvida que o jabuti respondeu, mas eu queria era provar uma fruta só, parece que nem valia a pena subir, pincha uma só, compadre!
            Mas seu macaco:
            - Nem casca atiro, suba ocê" Eu não subi? pois suba!
            Só que com o movimento pra olhar lá embaixo seu jabuti, Ivalecá relou o braço numa fruta que estava mesmo cai não cai, fruta caiu. Mais que depressa, o macaco gritou:
            - Lá vai uma, tá bom! Como ocê quer só experimentar, uma eu te mando!
            Seu jabuti comeu a fruta da inajá, e sentiu uma grande fome, só de pirraça. Buscou o encanto da voz pra falar implorando a Ivalecá:
            - Uhmm, fruta boa!...Seu macaco, seu macaco, esta vida é um buraco, vamos, seja camarada, não te custa nada, joga pra mim, por exemplo, uma semana de frutas!
            Mas qual, seu macaco sempre respondia se rindo, que a gente quando quer fruta de inajá, sobe nela, pois subisse. Então seu jabuti, não foi por distração, foi de raiva, campeou um jeito de subir no tronco da inajá, mas qual! não conseguiu. Ia se esfregando, esfregando, chegava a ficar de pé, todinho, e era aquela marmelada, rolava pra baixo outra vez. Seu macaco, cheio de paciência divertida, mostrou com uma elegância mãe como é que se subia. Jabuti ficou pasmo com tanta beleza, estava já pra elogiar, mas se lembrou que perdia tempo com as palavras e era capaz de esquecer a lição. Se esfregou no tronco, se esfregou, ficou de pé todinho, e foi aquela marmelada, rolou pra baixo outra vez. Sentiu-se fraco:
             - Ah, seu macaco, compadre, me carrega lá pra cima, eu! Macaco não teve pena, mas se lembrou porém de pregar uma boa no jabuti:
             - Pois sim, compadre. Vou te suspender.
              Desceu, meteu o jabuti no sovaco fedido, que foi só espirro, e pousou o ilustre bicho bem equilibradinho, lá na altura, sobre a cocaria da inajá.
            - E agora, não se esqueça de apitar na curva, benzinho! que ele caçoou do jabuti. E foi-se embora pra sempre, achando que a vida é bela.
            Seu jabuti compreendeu tudo num relance e ficou frio de susto, e agora pra descer! Mas assim mesmo, numa voz aguda,  ia falando:
             - Oh que horizonte maravilhoso!... "Olinda"" como dizem os pernambucanos, como dizem...os pernambucanos. Os pernambucanos. Os pernambucanos. Quarenta séculos vos contemplam...Infandum regina jubes, cui, cué, cuode. Cuí...cuá...cuá-cuá-cuá...ai, esta vida é um buraco...
             E sentiu uma saudade, mas tão dolorida, dos buracos, que até lhe veio uma lágrima no olho. Bem que pretendeu citar o "tremeu e quedou silenciosa"*, não foi possível mais, estava numa preocupação danada. Mas logo a preocupação lhe provou que não tinha motivo pra tanta preocupação. Com tanta fruta junto, inda ficava muito bem ali por quarenta dias, tempo demais pra sair da enrascada. Mas como estava carinhoso por ter visto a morte perto, quis fazer bem pra natureza, "vou cantar, sou passarinho", imaginou. E buscando na garganta os sons mais dulcíssimos da voz, botou a boca no mundo, cantando com horrendo som. A lua que subia no alto da tarde, parou olhando, espaventada com o horror daquela voz. E a noite chegando, o orvalho, os peixes, bacuraus, carapanãs e estrelas, tudo parava, sarapantado, sua vida, tudo pasmo daquela horrenda voz. Mas passou por ali um sabiá tenor, teve despeito.
            - Você, seu titica de galinha, está imaginando que todos te admiram? estão mas é pasmos da vossa horrenda voz.
            O ilustre bicho secundou:
            - Eu sei, ôh menestrel das selvas brasileiras, bem que sei. Mas dá na mesma.
             E continuou no canto. O sabiá bem que pretendeu tenorar um bocado, mas ninguém dava atenção pra ele, porque a natureza toda estava pasma gozando o ridículo daquele espetáculo, um jabuti trepado na inajá, cantando com horrenda voz.

* "...E a lágrima celeste, ingênua e luminosa
ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa". Verso de A lágrima, poema do poeta português  Guerra Junqueiro (1850-1923)

Crônica publicada  no Diário Nacional em 19.06.1932

12/07/2015

À Saudade


 

 
Depois qu'eu me for, Saudade,
o que mais importa?
(Se) serei lama verme poeira?
O vento me soprará às alturas
Serei pássaro?
Serei árvore?
 
O que importa, Saudade?


***

 Después que yo partir, Saudade,
lo que más importa?
(Si) seré lama, gusana, polvo?
El viento me soplará más allá
Seré pájaro?
Seré árbol?

Lo que importa, Saudade?


***


Aprés que j'aille, Saudade,
ce que importe plus?
(Si) serais-je boue, ver, poussière?
Le vent soufflera à moi jusque le ciel
Serais-je un oiseau?
Serais-je un arbre?

Ce que importe, Saudade?


09/07/2015

Maiakovski & Antonio Ramos Rosa



 

A nuvem de calças
 
Silêncio!
O Universo dorme
com a enorme orelha
cheia de estrelas
sobre a pata
 
Coração salpicado de lágrimas
(...)
Se quiserem, serei apenas carne louca
e, como o céu, mudarei de tom,
se quiserem,
serei impecavelmente delicado,
não serei homem, mas
uma nuvem de calças!
 




 

Fragmentos de escrita

Como que uma obrigação de renascer, de respirar. Algures, aqui, além, a sombra da frescura... Tu escreves, percorres a igualdade da página, a sua inenarravél brancura. Qual a experiência que em parte se dissimula, oculta pelo visível-invisível véu da superfície insondavelmente branca? Um animal de luz, um animal de sombra? Tu não podes dizer ainda o teu nome. Tens de defender-te pelo risco, pela audácia, pela minuciosa avaliação que te conduzirá à diferença desejada, à página prometida. O arco da aliança não é o arco de amanhã. Desviaste-te da estrada principal e procuras a disseminação do solo onde todos os caminhos conduzem aos caminhos que se perdem. Essa, a tua perda, o teu risco, a possibilidade do renovo. Há um tremor nas tuas mãos, és tu que tremes, não as palavras como fugidios desenhos, como lábios de uma ferida viva. As palavras são sempre demasiado rígidas ou fluidas. O traço nunca é diáfano ou transparente. Escreve-se sempre com as mãos nuas mas a nudez e a transparência da página é que permitem a penetração no obscuro, a revelação do invisível. Quando todos os vocábulos são de água e de ar e terra e fogo...


Antônio Ramos Rosa, em Quando o inexorável

04/07/2015

Assimetrias - II

 


 Caí-me debruçada sobre sonhos legendados em idioma indecifrável. O espelho da pupila reflete  imagens opacas e distorcidas. Desidrato as lágrimas que descem pelo rosto; o arco-íris que havia na íris dos olhos transformou-se num horizonte em preto e branco.
Os dias se apagaram para dar passagem a noite e o coração balança entre as mãos trêmulas e frias enquanto o fogo queima o fio d'água que desce pelo rosto abrindo ladeiras, buscando frestas, outras janelas.
A ampulheta denuncia que o tempo se esvai rapidamente espalhando uma fina camada de poeira sobre os olhos, como uma cortina nevoenta de renda escura. O vento sopra e a renda esvoaça o vaivém da angústia, das emoções desconhecidas e imprevisíveis. Não é noite não é dia, é atemporal, mas a filha do dia faz indagações noite adentro à procura da aurora escondida entre as malhas escuras de uma renda.
Há um cântaro (ou pelo menos havia) no canto do olho que pinga e respinga numa cantilena lacrimosa dia e noite: brilha e ofusca os olhos.
 - Abra o olho! - diz ele.
- Tenha paciência! - dizem outros.
 As palavras tornaram-se pó e subiram até as estrelas...


03/07/2015

Um crepúsculo sobre o rio Amazonas - Mário de Andrade

rio Amazonas, entardecer
 
E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo, é impossível descrever. Fez crepúsculo em toda abóbada celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que lado o sol deitava um céu todinho em rosa e ouro, depois lilá e azul, depois negro e encarnado se definindo com furor. As águas negras por baixo. Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do prazer foi tanta que não me permitiu mais gozar, fiquei com os olhos cheios de lágrimas.
 
 
Extraído do "Diário" de Mário de Andrade por ocasião de sua viagem etnográfica pela Amazônia, Peru e Bolívia em 1927.

01/07/2015

O turista aprendiz - trechos




18.05.1927
 
 
Há uma espécie de sensação fincada da insuficiência, da sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país tropical.... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza18.
 
 
Mário de Andrade
 
Em maio de 1927, Mário de Andrade saiu de São Paulo na companhia de três amigas com o objetivo de conhecer um pouco das regiões Norte e Nordeste. Durante esse período fez muitas anotações sobre o que via, quais as suas impressões, e ía registrando também em fotos, como fez com o seu autorretrato.   Mais tarde, essas anotações quase que diárias foram transformadas no livro O turista aprendiz.