Inajá, palmeira típica da Amazônia
Ora não vê que o jabuti estava passeando, no seu pensamento remoendo umas primeiras noções de fome, "não tenho fome, não tenho fome não" ele resmungava baixinho...Isso não era suficiente pra ele se convencer de que não tinha fome, porém a atenção empregada em repetir a frase bem certo, disfarçava a sensação, e jabuti não tinha fome, por esquecimento. Nisto a serapilheira clareou mais e junto dum tronco forte, seu jabuti encontrou uma fruta de inajá. "Eis que tenho fome!" ele falou bem alto, se escutou, sentiu a fome bem, e papou a fruta de inajá.
Então, meio com desejo de mais, subiu o olhar pelo tronco robusto, e isso era uma palmeira inajá linda, viçosa, carregadinha de fruta. E lá no cocoruto, suspenso facilzinho, estava Ivalecá, seu macaco, se regalando com a cocada inajá, como se aquilo fosse dele, desaforo. Seu jabuti sentiu uma bruta fome, disse:
- Olá compadre, pincha umas frutinhas prá gente!
Mas o macaco secundou:
- Que nada! Suba ocê! Eu não subi? pois suba!
- Não tem dúvida que o jabuti respondeu, mas eu queria era provar uma fruta só, parece que nem valia a pena subir, pincha uma só, compadre!
Mas seu macaco:
- Nem casca atiro, suba ocê" Eu não subi? pois suba!
Só que com o movimento pra olhar lá embaixo seu jabuti, Ivalecá relou o braço numa fruta que estava mesmo cai não cai, fruta caiu. Mais que depressa, o macaco gritou:
- Lá vai uma, tá bom! Como ocê quer só experimentar, uma eu te mando!
Seu jabuti comeu a fruta da inajá, e sentiu uma grande fome, só de pirraça. Buscou o encanto da voz pra falar implorando a Ivalecá:
- Uhmm, fruta boa!...Seu macaco, seu macaco, esta vida é um buraco, vamos, seja camarada, não te custa nada, joga pra mim, por exemplo, uma semana de frutas!
Mas qual, seu macaco sempre respondia se rindo, que a gente quando quer fruta de inajá, sobe nela, pois subisse. Então seu jabuti, não foi por distração, foi de raiva, campeou um jeito de subir no tronco da inajá, mas qual! não conseguiu. Ia se esfregando, esfregando, chegava a ficar de pé, todinho, e era aquela marmelada, rolava pra baixo outra vez. Seu macaco, cheio de paciência divertida, mostrou com uma elegância mãe como é que se subia. Jabuti ficou pasmo com tanta beleza, estava já pra elogiar, mas se lembrou que perdia tempo com as palavras e era capaz de esquecer a lição. Se esfregou no tronco, se esfregou, ficou de pé todinho, e foi aquela marmelada, rolou pra baixo outra vez. Sentiu-se fraco:
- Ah, seu macaco, compadre, me carrega lá pra cima, eu! Macaco não teve pena, mas se lembrou porém de pregar uma boa no jabuti:
- Pois sim, compadre. Vou te suspender.
Desceu, meteu o jabuti no sovaco fedido, que foi só espirro, e pousou o ilustre bicho bem equilibradinho, lá na altura, sobre a cocaria da inajá.
- E agora, não se esqueça de apitar na curva, benzinho! que ele caçoou do jabuti. E foi-se embora pra sempre, achando que a vida é bela.
Seu jabuti compreendeu tudo num relance e ficou frio de susto, e agora pra descer! Mas assim mesmo, numa voz aguda, ia falando:
- Oh que horizonte maravilhoso!... "Olinda"" como dizem os pernambucanos, como dizem...os pernambucanos. Os pernambucanos. Os pernambucanos. Quarenta séculos vos contemplam...Infandum regina jubes, cui, cué, cuode. Cuí...cuá...cuá-cuá-cuá...ai, esta vida é um buraco...
E sentiu uma saudade, mas tão dolorida, dos buracos, que até lhe veio uma lágrima no olho. Bem que pretendeu citar o "tremeu e quedou silenciosa"*, não foi possível mais, estava numa preocupação danada. Mas logo a preocupação lhe provou que não tinha motivo pra tanta preocupação. Com tanta fruta junto, inda ficava muito bem ali por quarenta dias, tempo demais pra sair da enrascada. Mas como estava carinhoso por ter visto a morte perto, quis fazer bem pra natureza, "vou cantar, sou passarinho", imaginou. E buscando na garganta os sons mais dulcíssimos da voz, botou a boca no mundo, cantando com horrendo som. A lua que subia no alto da tarde, parou olhando, espaventada com o horror daquela voz. E a noite chegando, o orvalho, os peixes, bacuraus, carapanãs e estrelas, tudo parava, sarapantado, sua vida, tudo pasmo daquela horrenda voz. Mas passou por ali um sabiá tenor, teve despeito.
- Você, seu titica de galinha, está imaginando que todos te admiram? estão mas é pasmos da vossa horrenda voz.
O ilustre bicho secundou:
- Eu sei, ôh menestrel das selvas brasileiras, bem que sei. Mas dá na mesma.
E continuou no canto. O sabiá bem que pretendeu tenorar um bocado, mas ninguém dava atenção pra ele, porque a natureza toda estava pasma gozando o ridículo daquele espetáculo, um jabuti trepado na inajá, cantando com horrenda voz.
* "...E a lágrima celeste, ingênua e luminosa
ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa". Verso de A lágrima, poema do poeta português Guerra Junqueiro (1850-1923)
Crônica publicada no Diário Nacional em 19.06.1932
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