osverdesfotos.googlepages.com/ouremparaComo hoje acordei meio saudosa de um tempo que não volta mais, fui remexer meu "baú literário" e encontrei essa crônica do Edilson Martins, publicada na extinta revista "Careta" em setembro de 1981. Para quem não conhece, ele é do Acre, jornalista e escritor com vários livros publicados, entre os quais "Nossos índios, nossos mortos", Nós do Araguaia", "Chico Mendes, um povo da floresta", "Amazônia, a última fronteira". Escrevia também para o semanário "Pasquim". Por ser bastante extenso, omiti alguns trechos do texto cujo título é "Índio goza? Goza!!!
Uma das minhas grandes distrações quando me encontro numa cidade é contemplar, nos Supermercados, nas noites de sexta, ou sábado, um casal de classe média. São interessantes, e invariavelmente gordos. A gordura é um grande recado. Costumo dizer, buscando um certo efeito, que não existem pessoas gordas nas cidades. Existem sim, pessoas inchadas. Se meu corpo está inchado, é evidente que também minh'alma minha concepção de mundo. Usam tênis Adidas, bermudas da moda, são alegres, contidos, e dão linguadas indecorosas - o que não fazem mais, ou nunca fizeram entre si - no sorvetão colorido da esquina. O carrinho de compras completa a leitura definitiva dos dois, com os pães brancos, os adoçantes, o arroz branco, as geleias e todo esse pacote de sedução e envenenamento com que a vida urbana e civilizada, arrebata parcela ponderável dos corações e mentes da classe média.
Há mais de 10 anos venho estabelecendo contatos com nossas culturas primitivas. Somos herdeiros de uma sexualidade indígena e de uma sexualidade judaico-cristã. E há um contraste enorme entre as duas. Ignoramos praticamente tudo da primeira, e
queremos cada vez mais saber da segunda.
Nada mais fantástico que a beleza dessa experiência, que nos remete a um convívio com povos possuidores de uma vivência imemorial. A cultura judaico-cristã tem 2 mil anos, os Estados Unidos 500 anos, o Brasil também, a França 1.200 anos, a Itália unificada 300 anos, mas os índios têm 10, 15, 20 mil anos.
Esses indígenas nos oferecem, portanto, a visão mais original do mundo. Viver a experiência deles, é alguma coisa rica, que nos arrebata.
O erotismo indígena concebe o gozo como uma graça divina. O gozo do doce, do amargo, do sexo, do olhar, da pintura, do artesanato, da boca. E esses prazeres são uma homenagem a Deus. Talvez não exagere em afirmar; não há pecado no gozo, junto aos nossos selvagens. Já o mesmo não acontece com a nossa herança judaico-cristã. Reprimimos tudo ou quase tudo que possa ser associado ao prazer. E dentro da espiral do prazer tudo passa a valer exarcebadamente. O exercício de amar se transforma em prazer de dominar, o compromisso com o corpo em postura ridiculamente narcisística, o amor em luxúria. Quanto a comer e beber nem se fala. São poucos os que não comem, hoje, nas grandes cidades, pantagruelicamente, (referência a Pantagruel, personagem comilão, criado pelo escritor francês Rabelais)tantas são as frustrações e desencantos.
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Houve um tempo, que entre os índios do Maranhão, os homens não estavam com nada. Não serviam para coisa nenhuma. As mulheres caçavam, pescavam, plantavam, tomavam conta da aldeia, guerreavam e faziam amor intermitentemente. Os homens se limitavam a dormir. comer, nem sexo tinham, e talvez por isso mesmo. Permaneciam o dia inteiro deitados, olhando o céu e as estrelas, dominados pelo tédio do sono e ausência de sexualidade.
As mulheres por sua vez, eram permanentemente irrequietas, produtivas, belas, descontraídas e plenas de sexualidade. Não se tem notícias desse tempo, de nenhuma mulher gorda, encouraçada e rija feito jabuti, dessas que a gente encontra nos supermercados, nas repartições, nos escritórios, nas agências bancárias.
Quando sentiam desejo sexual, e isso ocorria todos os dias, batiam no chão, e diziam:
- Ó meu rancuãi-ang, ó meu macho adorado e que me sacia, vem, vem logo...
Então, do interior do pátio, saía um minhocão de meia milha de comprimento, olhos de cobra, língua bifurcada e cabeça e boca de cobra.
Atentem bem para esses detalhes, já que mais tarde, bem mais tarde, bem mais recentemente, isto é, na primeira metade deste nosso século(este artigo foi escrito em 1981) Freud encantaria o mundo - cobra como símbolo fálico - causando formidável alvoroço em nossa ciência, quando na verdade qualquer aborígina kadiwéu tava careca de saber, há milênios, que essa associação tem a ver com tesão.
Esse minhocão imenso, convocado, não se fazia de rogado, conforme acontee hoje com parcela ponderável dos homens. Introduzia-se na arapuá - vagina - da mulher, e só a deixava depois de plenamente saciado o desejo de ambos. O que era sempre fácil e prazeroso, em decorrência daquela visão de mundo a que nos referimos no começo; ausência de pecado no gozo. O nosso estimado minhocão, com cabeça de cobra, recolhia-se, vejam bem a beleza desse simbolismo, ao interior da terra, e a mulher lá se ía, descontraída, relaxada e derramadamente, urinar num pote de barro. Hoje uma mulher que se derrame numa relação afetiva vira dominada; no caso de um homem se transforma em filhinho, algo regredido e sem sedução.
Pois bem, nesse pote, cinco dias depois, nascia, no seu interior, uma criança. Como qualquer filho de um amor profundo, era recebido com festa e encantamento.
etnia akuntsu, rio Omerê - Rondôniahttp://www.povosindígenasnobrasil.com.br/O herói cultural desta nação sempre advertia que essa cerimônia afetiva nunca poderia ser assistida por um índio. Uma mulher desavisada, levada talvez pela leviandade do liberalismo, da abertura, que já naquela época começava a iludir muitos corações e mentes, deixou-se ser vista, durante um desses encontros, numa noite de lua cheia, por um índio que padecia de insônia. Este impertinente personagem a tudo assisitiu entre curioso e perplexo. Fico a imaginar que fantasias extraordinárias não deve ter ele vivido naquele sublime momento em que uma mulher agachada se despedaçava toda com aquele minhocão dentro de si. Um gozo que tinha por luminária a Lua, a terra sensual por cama e as matas, com suas árvores frondosas, por cortina.
Não conseguiu dormir, tais foram as fantasias, ele que dispunha de um corpo mole, olhar sem luz, alma sem energia. Na noite seguinte, com toda a aldeia dormindo, não se conteve mais e apelou, no meio do pátio, esganiçadamente:
- Ó meu rancuãi-ang, ó meu macho querido, vem...
E eis que lhe aparece, pronto, disponível. Já por não dispor de carapuá, senão por não se poder exigir de ninguém desempenho e aprendizagem tão rápidos diante de proposta tão sedutora e ameaçadora, o nosso homem reagiu violentamente.
Apanhou um machado de pedra que tinha à mão e decepou a cabeça do racuãi-ang. Deve ter dito para si mesmo, assim também é demais. As mulheres tão logo tomaram conhecimento da tragédia armaram pequenas revoltas. Foram juntas ao herói cultural e ameaçaram queimar a floresta, encher os rios de pedras, por pra quebrar, matar todos os animais, e outras pressões do gênero.
O herói cultural preocupadíssimo. vai à aldeia, apanha um facão, e corta em pedaços o minhocão imenso, que, desfalecido, ocupava a metade do pátio. Cada fração decepada era imediatamente introduzida entre as pernas dos homens. A partir desse dia os homens passaram a caçar, pescar, trabalhar e surucar - copular - certamente sem o desempenho do rancuãi-ang de ontem. Que o digam as mulheres desamadas de hoje.
As mulheres, a partir também desse momento, deixaram de ver nascer seus filhos no interior do pote. Passaram a ser gerados no interior de seus próprios ventres.
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O mito é uma lenda que está carregada de verossimilhança, de fé, é alguma coisa viva, na qual todos acreditam. Uma das minhas utopias é imaginar que um dia resgatemos nossa mitologia indígena, essa parcela ponderável de nossa formação cultural. E que deixemos de nos centrar unicamente nessa pobre mitologia bíblica, pobre porque castradora, rompida com a vida, cheia de punições. Que não tenhamos por herança apenas a concepção de mundo judaico-cristã, onde Adão e Eva são punidos, justamente, por exercerem uma das práticas mais lindas de nossa humanidade, que é o prazer da boca - maçã - e o prazer do sexo. Essa utopia significaria uma retomada de nossa indianidade, de tal forma que os nossos intelectuais da costa brasileira, em sua produção científica, não ficassem pura e simplesmente traduzindo para o português a reflexão dos nossos colonizadores, invariavelmente uma gente cinzenta, rompida com a vida e o prazer, gordinhos, frequentadores de Supermercados, em nada ou quase nada, diferentes do casal de classe média abordado no início desta conversa.
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