DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

25/01/2010

Haitianos - Literatura e Artes Plásticas

Edwidge Danticat

Uma das primeiras pessoas assassinadas em nosso país foi uma raínha. Seu nome era Anacaona e ela era uma índia Arawak. Ela era poeta, dançarina e pintora também. Governava a parte oeste de uma ilha tão exuberante e verde, que os Arawak a chamavam de Ayiti, terra da grandeza. Quando os espanhóis chegaram pelo mar à procura de ouro, Anacaona foi uma de suas primeiras vítimas. Ela foi estuprada e morta e sua aldeia foi saqueada. A terra de Anacaona é agora frequentemente chamada de o país mais pobre do hemifério ocidental, um lugar de contínua conturbação política. Assim sendo, para alguns é fácil esquecer que esta nação foi a primeira república negra, terra dos primeiros afrodescendentes a extirpar a escravidão e criar uma nação independente, em 1804.
Nascí no Haiti, durante o regime ditatorial de Duvalier. Quando tinha quatro anos, meus pais deixaram o país, à procura de uma vida melhor nos Estados Unidos. Tenho de admitir que a motivação deles era mais econômica do que política, mas como todos que conhecem o Haití sabem, economia e política estão intrisecamente relacionadas; em geral, quem está no poder é quem determina se as pessoas terão ou não o que comer.
Hoje tenho trinta e quatro anos. As lembranças mais vivas de minha infância no Haiti, envolvem apagões repentinos, os "blakawouts", como dizíamos. Durante os blecautes, eu não tinha como ler, estudar ou assisistir televisão; então, me sentava perto de uma vela ou de uma lamparina e ouvia estórias contadas pelos mais velhos.
Minha avó era uma mulher da roça que sempre se sentiu deslocada na capital, onde vivíamos. Não possuía nada além de suas colchas de retalhos e suas estórias pra se consolar. Foi ela quem me contou sobre Anacaona. Dividia o quarto com ela e estava a seu lado quando ela faleceu. Tinha mais de cem anos. Morreu com os olhos arregalados; eu os fechei. Ainda sinto saudades das estórias que ela nos contava.



"Loteria" - Yordan Dabadi(.........................)


Ao assistir aos telejornais, é sempre difícil dizer se existem mulheres reais, vivas e respirando em lugares atingidos por conflitos como o Haiti. Os telejornais da noite só nos dão notícias breves sobre golpes presidenciais, imigrantes rejeitados e sabotagens em eleições. As histórias das mulheres nunca chegam às primeiras páginas. Mas elas existem, sim.

(....................................)


Há um ditado haitiano que talvez não agrade a sensibilidade estética de algumas
mulheres. Nou lèd, nou la, que quer dizer "Somos feias, mas estamos aqui". Assim como a modéstia é uma característica da cultura rural haitiana, esse ditado é mais importante para as mulheres haitianas pobres, do que ter beleza, seja ela superficial ou não. Para mulheres como minha avó, o que valia a pena celebrar era o fato de estarmos aqui, de apesar de todas as adversidades, existirmos. Para mulheres como minha avó, que se cumprimentavam dessa maneira quando se cruzavam no caminho da roça, a essência da vida estava na sobrevivência. É sempre bom lembrar às nossas irmãs, que sobrevivemos a mais um dia para atender ao chamado de uma vida muitas vezes dolorosa e muito difícil. É com este espírito que uma mulher ainda hoje lembra-se de dar à sua filha o nome de Anacaona, um nome que representa tanto o esplendor quanto a agonia de um passado que assombra a tantas mulheres e homens.



"Um cavalheiro bem apessoado" - Pierre Louis Riche



(.........................)

Quando foram escravizados, nossos antepassados acreditavam que ao morrerem, seus espíritos retornariam à África. Mais exatamente, para uma terra pacífica, que chamamos de Ginen, habitada por deuses e deusas. As mulheres que vieram antes de mim eram mulheres que falavam metade de uma língua e metade de outra: o francês e o espanhol de seus colonizadores, misturados à sua língua africana. Pareciam falar uma língua estranha quando rezavam para seus velhos deuses, antigos espíritos africanos. Apesar do temor de não serem mais entendidas por suas antigas divindades, inventaram uma nova língua para descrever o local que passaram a habitar, uma língua da qual surgiram frases coloridas para aliviar situações desesperadoras. Quando se cumprimentavam, se descobriam falando em código:


- Como vai você hoje, irmã?


- Eu sou feia, mas estou aqui.


"A Reunião", de Aland Estime

(........................)


Minha avó acreditava que se uma vida é perdida, outra vida brota em outro lugar, sendo essa nova vida ainda mais forte que a outra. Ela acreditava que uma pessoa não morre, realmente, desde que alguém se lembre dela, alguém que reconheça que essa pessoa, apesar de tudo, está aqui. Nós somos parte de um círculo sem fim, somos as filhas de Anacaona. Nós envergamos, mas não quebramos. Não somos atraentes, mas ainda assim resistimos. De vez em quando devemos gritar isso o mais distante que o vento possa levar nossas vozes. Nou lèd, nou la! Somos feias, mas estamos aqui.


Trechos de um texto escrito pela escritora haitiana Edwidge Danticat, que está circulando pela internet. As imagens foram extraídas de "Os pecados do Haiti", escrito pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano. Nenhuma das fotos aqui mostradas
continha crédito, razão pela qual não pude mencioná-lo.

5 comentários:

  1. gracias por compartir esta información, es nueva para mí.
    besos

    ResponderExcluir
  2. Um belo e tocante texto; onde realidade e poesia aninham-se em harmonia.

    "Somos feias, mas estamos aqui" vai além de um simples chamado à memória. ...estamos aqui, não nos esqueçam!

    Sábio é o povo que preserva sua cultura, sua Língua, - sua mais importante identidade. Sábio é todo aquele que compreende que só há morte quando há esquecimento.

    Bjs e inté!

    ResponderExcluir
  3. Que texto fantástico, me comoveu mais do que um monte de blá-blá-blá que li sobre o Haiti. Quanto às imagens: conheço um pouco da arte dita "primitiva" do Haiti, e é realmente de muito boa qualidade, como mostram as que trouxe (para meu gosto, menos a do sujeito gordinho, imitação de Botero). Obrigada pelo ótimo post.

    ResponderExcluir
  4. Também acho que foi a coisa mais bonita que li sobre o Haití, nestes últimos tempos. A história e o sentimento de um povo, retratado com a simplicidade e a intensidade de quem viveu esta história. Parte do texto me fez lembrar dos Titãs: "Antes de mim vieram os velhos, os jovens vieram depois de mim
    e estamos todos aqui, no meio do caminho dessa vida vinda antes de nós. Estamos todos a sós e estamos todos no meio, quem chegou e quem faz tempo que veio. Ninguém no início ou no fim..."
    Círculo sem fim - estamos todos aqui. E estamos todos conectados, somos todos um, precisamos "nos" cuidar.
    Obrigada por esta emoção, Cirandeira. Beijo!

    ResponderExcluir
  5. Cirandeira, sou feia mas estou aqui....
    Que belo texto, que relato emocionado e doce, sem raiva, sem medo, sem pudores. A história do Haiti é surpreendente mesmo, tantas traições, repúdios, ditadores... vale mesmo relembrar as tradições e a singeleza desse povo. E que Deus nos salve!

    ResponderExcluir