Estamos na África. É quase fim do dia e ondas de calor ainda sobem do chão, dando ao panorama um aspecto trêmulo de imagem de tv mal sintonizada.
Tudo está calmo, até que, de repente surge no horizonte uma nuvem solitária, que vai postar-se corajosamente à frente do sol. Durante alguns instantes, ela sustenta um bravo combate contra o gigante amarelo, que ainda teima em queimar. A luta, porém, logo revela-se inglória para a nuvem: em poucos minutos ela sucumbe, desmanchando-se em fiapos como uma toalha de rosto ordinária depois da primeira lavada.
Vitorioso, o sol empunha outra vez, o seu cetro ardente e a África volta a arder.
Dali a instantes, outra nuvem aparece. Desta vez, porém, é bem mais robusta. E, o mais importante, ela não vem sozinha: um imenso e encorpado exército de suas irmãs vem atrás. Todas trazem preso ao ventre um imenso escudo de chumbo. Já retumbam nos ares os bumbos marciais, enquanto as espadas recurvas esgrimem ferozmente nos céus. O sol, pela primeira vez, acusa a preocupação, mostrando-se ligeiramente pálido. Uma atmosfera de elétrica tensão espalha-se incontrolavelmente pelo ar.
- Desta vez o combate é pra valer! - gritam as aves no céu, num alarido nervoso de dispersão.
O ruído dos tambores atroa, agora, o teto do mundo. Homens e animais correm pela terra ou lançam-se, sem vergonha, sobre o chão, pois "morrer de raio", sabem todos, não é nada incomum em tais ocasiões.
Finalmente, a batalha começa. Uma chuva de pedras de gelo - gelo em plena África! - cai dos céus como uma fuzilaria celestial. Boa parte do gado desprotegido - especialmente os frágeis bezerrinhos - sucumbe sob a impiedosa descarga. Aqui e ali, veen-se grupos de moleques nus a chuparem avidamente os diamantes miraculosos. Seus olhos brilham mais que as pedrinhas geladas no interior de suas bocas.
E, acima da cabeça dos homens e dos animais, a chuva. Uma chuva estuante, uma enorme cortina d'água que o vento agita selvagemente. No chão, a terra seca sorve a água como uma imensa e ressequida esponja, enquanto as cacimbas vazias escancaram ainda mais para o alto a cova negra de suas bocas.
Tudo é alegria e excitação, agora, menos para um ser inteiramente avesso à chuva.
- Droga de aguaceiro! - diz Oxumaré, protegido por um telhadinho de colmo que o vento ainda não conseguiu levar - E esses trovões? E esses coriscos?
Lá no alto, entretanto, também há mais uma pessoa a desgostar do temporal.
- Socorro! Não enxergo nada! exclama ninguém menos que Olorum, o pai dos deuses.
Seja por causa das ofuscantes descargas elétricas ou por uma moléstia desconhecida qualquer, o fato é que o deus supremo não enxerga mais patavinas naquele momento.
Logo os deuses todos amontoam suas caras retintas diante de seu rei e senhor.
- O que houve? dizem todas as bocas alarmadas.
- Estou vendo tudo preto na minha frente, eis o que é! - diz ele.
Exu, o deus traquinas, tenta acalmar a aflição à sua maneira.
- Pudera, com todo mundo em cima! Fora, todos, vamos! - diz ele, espalhando os deuses.
Mas de nada adiantou, até que Oxumaré aproxima-se, rompendo o bloqueio.
- Deixem-me passar, idiotas! Eu sei curá-lo!
Os dois deuses curadores, Omulu e Ossaim, também são violentamente afastados, originando-se daí, uma violenta querela.
- Desde quando pretende usurpar as nossas funções? - diz Omulu por baixo de sua veste de palha.
Ossaim também esbraveja pela boca de Aroni, seu minúsculo e pernalta porta-voz.
- Deixai a mim o encargo de curar o deus supremo e voltai às vossas atribuiçõezinhas subalternas! - diz o pequeno ser (já que, como vimos, Ossaim é incapaz de falar por si próprio).
Mas Oxumaré teima e não deixa ninguém se aproximar, nem mesmo Xangô, o deus da justiça - de quem aliás, terá no futuro, razões de sobra para querer distância.
- Fora todos! - diz o deus inimigo da chuva, enquanto os relâmpagos continuam a espocar.
Sem dar tempo aos demais, Oxumaré saca, então, a sua faca de bronze e a aponta destemidamente para o céu, onde as nuvens continuam a despejar as suas águas. Logo depois, desenha no céu com sua adaga um grande arco multicor, fazendo o temporal cessar instantaneamente.
- Minha visão! Voltei a enxergar! - brada Olorum, feliz e aliviado.
Obra do arco mágico ou não, o fato é que Oxumaré conseguiu curar o deus supremo, que no mesmo instante, ordenou uma grande festa no Orum (ou céu) para homenageá-lo.
Porém, lá com os seus botões, Olorum pensou: "Não posso permitir, de jeito nenhum,
que ele volte a habitar a terra! Vai que eu volto a ser acometido pela mesma moléstia?"
Então, antes que a festa terminasse, o deus supremo anunciou o seu soberano decreto:
- De agora em diante, Oxumaré, você viverá aqui no céu, sem arredar o pé de mim. Apenas uma única vez deverá retornar à terra, e será sempre que a chuva cair!
Oxumaré ficou de todas as cores do arco-íris, enquanto escutava o restante do decreto:
- A partir de hoje, sempre que a chuva cair sobre a terra, o seu arco será visto a brilhar logo em seguida! - finalizou o deus supremo, com um sorriso paternal.
E foi assim que Oxumaré tornou-se o deus do arco-íris.
Extraído de "As Melhores Histórias da Mitologia Africana", de
A. S. Franchini/ Carmem Seganfredo - Artes e Ofícios Editora Ltda. Porto Alegre (RS)
Cirandeira, li e reli. Amanheci lendo em estado de puro fascínio :)
ResponderExcluirA mitologia tem histórias fascinantes e nos
ResponderExcluirtransmite imagens que muitas vezes nos deixam
em um estado de encantamento! E são de uma beleza extraordinária!
História com o encanto do traço da ancestralidade...
ResponderExcluirBeijo
minha mãe publicou esse ano um livro de lendas yourubás. é lindo. são histórias que ela escutou de seu professor de youbá, um nigeriano, que viveu aqui na Bahia na década de 80.
ResponderExcluiro livro é lindo.
bjo
Que bom. Maria...E o que vc achou dessa lenda
ResponderExcluirde Oxumaré?
Cirandeira, adoro todas as lendas relacionadas ao candomblé.
ResponderExcluirmeu Deus, não escrevi nenhuma vez a palavra yorubá certa!