DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/03/2012

Elogio à Pntura da Primeira Saudade

Crepúsculo, Van Gogh







Nesses teus quadros ficaram os crepúsculos, as luzes difusas. As silhuetas são metades. Os olhos são perguntas. As cores são ocres e minerais.


Há ruínas e sonhos: dois vultos sobre um solo petrificado, aquele pássaro e aquele rosto sobre a lava vulcânica, e as marcas de pés negros negros sobre o amarelo pedregoso, texturizado. Ancestralidade é o que parece pairar sobre todas as tuas composições: o velho Parthenon, a cena de caça rupestre cintilando no alumínio, aquele estranho ser alado estranho-ser-alado em contraste com o fundo terroso que, por seu brilho ígneo, me remete à descoberta do fogo: salamandra. Teu ser-salamandra é fresta, uma passagem de fogo para outro mundo, a língua-de-fogo que desemboca nas cavernas e nas gargantas de nossos
antepassados.


Quanta saudade nesses cobres avermelhados contra o céu da prússia, nesse vermelho-de-óxido e na siena queimada, e até no amarelo ouro... Há saudade no amarelo quando iluminado pela tua lanterna medieval... Há saudade nas frestas, e há frestas por toda parte!, nas silhuetas, na salamandra-inseto e nos olhos que nos espreitam de teus quadros...Há frestas entre as metades e nas distâncias que nos separam da arte pré-histórica que você quis rememorar, a nostalgia de um tempo que não se viveu. E lirismo, também (permita-me dizê-lo!), de um tipo quase hipnótico, mas não fácil; do tipo que "ousa interrogar as idades"...


Você murmurou alguma coisa como as interjeições primitivas, aqueles indizíveis que o ancestral tentou balbuciar quando se entristeceu ou viu o sagrado pela primeira vez: quando descobriu o raio incendiando uma árvore, a criança agonizando, a lua saindo por detrás da primeira nuvem.E você nos mostra essas interjeições como verdes em vermelhos, como negros em amarelos, como acalantos e tristezas poéticas, algo para se ver e ouvir ao redor do fogo, com olhos de farolete. É a tua versão daquela canção feita de interjeições nascentes, nascidas da visão do mundo visto pela primeira vez.


Difícil imaginar lirismo mais radical. Ou mais triste.

Marcelo Novaes

30/03/2012

A mão e a palavra



A mão que acaricia meu cérebro

meus cabelos calmam (se)

lavam, passam sobre teu corpo

tece, desfia palavras -

aí o coração diz o que

a boca não fala:

o que posso sonhar?

A palavra bifurcou-se,

alongou-se por caminhos conhecidos

perdeu

o voo do pássaro.

Agora enlouquecida puxo-a

pelos cabelos - a palavra grita,

arregalam-se meus olhos:

para onde foi o verbo,

não vem socorrer-me?

29/03/2012

O tempo gastador de mil idades




O Tempo gastador de mil idades,
Que na décima esfera vive e mora,
Não descansa co’a Fúria tragadora,
De exercitar, feroz, suas crueldades.

Ele destrói as ínclitas cidades,
As egípcias pirâmides devora:
Sua dentada fouce assoladora,
Rompe forças viris, destrói beldades.

O bronze, o ouro, o rígido diamante,
A sua mão pesada amolga e gasta
Levando tudo ao nada, em giro errante.

Como trovão feroz rugindo arrasta,
Quanto cobre na Terra o sol radiante,
Só da Virtude com temor se afasta.



Francisco Joaquim Bingre, pertenceu a Academia de Belas Letras, também conhecida como Nova Arcádia de Lisboa. Embora seja autor de uma vasta obra que inclui sonetos, odes, sátiras, farsas, fábulas, ainda é pouco conhecido em Portugal, onde nasceu. (1763-1856).

25/03/2012

In Vocação

Sarcófago, Museu de Alexandria



Tanto silêncio quanto palavras
um acordar tão em des-acordo
e continua no mais profundo sono
discordando do que ocorre na corda
dá voltas e mais voltas em sobressaltos
de vozes alteradas, as letras pulam
gritam imprecações diante do pátio
no cadafalso estranguladas
- quem dá mais?
Vinde, vinde a mim!
Vinde a nós, a todos vocês!
Que do silêncio mais profundo
ecoem todas as palavras,
uma multidão de vocábulos, sílabas,
frases e todos
os verbos silenciados!

23/03/2012

La poesaia es un atentado celeste




Yo estoy ausente pero en el fondo de esta ausencia
Hay la espera de mí mismo
Y esta espera es otro modo de presencia
La espera de mi retorno
Yo estoy en otros objetos
Ando en viaje dando un poco de mi vida
A ciertos árboles y a ciertas piedras
Que me han esperado muchos años
Se cansaron de esperarme y se sentaron

Yo no estoy y estoy
Estoy ausente y estoy presente en estado de espera
Ellos querrían mi lenguaje para expresarse
Y yo querría el de ellos para expresarlos
He aquí el equívoco el atroz equívoco

Angustioso lamentable
Me voy adentrando en estas plantas
Voy dejando mis ropas
Se me van cayendo las carnes
Y mi esqueleto se va revistiendo de cortezas
Me estoy haciendo árbol Cuántas cosas me he ido convirtiendo en
[otras cosas...
Es doloroso y lleno de ternura

Podría dar un grito pero se espantaría la transubstanciación
Hay que guardar silencio Esperar en silencio


Vicente Huidobro, Chile - (1893-1948)

De Últimos Poemas, 1948

21/03/2012

Ah, os astrolábios...!

lua-lâmina-omoplata o cão de porcelana desfeito

na porcelana da constelação ou esta água

pesada nos coágulos da luz

alí onde da matéria mole do sol

se forjam estrelas

cheguei à idade que um dia sonhei ter,

mas o sonho não permaneceu com a idade

aqui nesta terra longe

antecidade ante tudo o que foi feito

(há lugares que esquecem de se atualizar segundo os mapas)

uma geração vendida por pouco

esqueceu que sistemas são subversíveis

subvertemos agora os astros que não pertencem a nós

a língua:

astrolábio de céu da boca

Paul Valéry, França (1871-1945)

Tradução de Márcio André

20/03/2012

Lautréamont e Rimbaud


Ó ser humano! eis-te agora, nu como um verme, diante do meu gládio de diamante! Abandona teu método; passou o tempo de te fingires orgulhoso; lanço sobre ti minha oração, em atitude prosternada. Alguém observa os mínimos movimentos de tua vida criminosa; estás envolvido pelas malhas sutis da sua perspicácia encarniçada. Não confies nele quando vira as rédeas, pois te encara; não confies nele quando fecha os olhos, pois ainda te encara. É difícil supor que, por meio de artimanhas e maldades, tua temível resolução tenha sido ultrapassar o fruto de minha imaginação. Mesmo seus golpes mais fracos têm efeito. Com cuidado, é possível ensinar àqueles que fingem ignorá-lo que lobos e salteadores não se devoram mutuamente; talvez não seja hábito.

"Os Cantos de Maldoror" de Isidore Ducasse ou Conde de Lautréamont, (1846-1870) nascido em Montevidéu, considerado o grande poeta maldito da segunda metade do século XIX, junto com o seu contemporâneo Arthur Rimbaud.
"Rimbaud Livre"- Augusto de Campos, Arnaldo Antunes

Voyelles
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles
je dirai quelque jour vos naissances latentes;


A, noir corset velu des mouches éclatantes


qui bombinent autour des puanteurs cruelles.


Golfes d'ombre; E, candeurs des vapeurs et des

/tentes.

Lances des glaciers fiers, rois blancs, frisson

d'ombelles;


I, pourpres, sang craché, rire de lèvres belles;

Dans la colère ou les ivresses pénitententes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides,

Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides

Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux;

O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,

Silences traversés des Mondes et des Anges;

- O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux!


******
Vogais


A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul,

/ vogais;

Ainda desvendarei seus mistérios latentes

A velado voar de moscas reluzentes

Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E nívea candidez de tendas e areais,

Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;

I escarro carmim, rubis a rir nos dentes

Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U curvas vibrações verdes dos oceanos,

Paz de verduras, Paz dos pastos, paz dos anos

Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O supremo Clamor cheio de estranhos versos,

Silêncios assombrados de Anjos e Universos;

- Ó Ômega, o sol violeta dos Seus Olhos!


Tradução de Augusto de Campos

17/03/2012

Um não sei o quê

The mirage of the time



Largos são os caminhos do poema e bem estreitos os da poesia.


Gilberto Mendonça Teles



Não. Não é poesia, sequer um poema. Apenas um escancarar desabrido de palavras: teimam acintosamente em atropelar verbos, frases, períodos inteiros do pensar!

Um não sei o quê exposto na rua do medo, do desassossego...

Um não sei o quê largado no asfalto frio, nas águas do desamparo, na correnteza do existir...

Tampouco são versos: cuspo palavras pelos dedos, pela boca fechada. Palavras trêmulas, titubeantes buscam um fio de prumo. Quem sabe amanhã

encontro o corpo do sonhar no meio da Avenida!

***

"Já viram um sonho andando por aí?

Bem, eu ví.

Já ouviram um sonho falar?

Bem, eu ouví".

***

"Surgiu uma nova lâmina de barbear. Você não precisa de água, nem de sabão: as lágrimas bastam!"

Júlio Cortázar

15/03/2012

Dos pés que falam



pés que ardem, queimam o andar
do caminhante, perambulam
pulam, descem, sobem pelas paredes
do meu quarto em noites chuvosas
pelas rugas de meus olhos

lágrimas
escorrem goela abaixo
do meu ventre
soluços estalagmatizados,

calcinados pelo tempo
nas galerias subterrâneas

do meu corpo
pés subiram e desceram
ladeiras sinuosas
por caminhos venosos

hoje plantados sobre

falsas quimeras...!

14/03/2012

Do silêncio do corpo

Arte urbana


Quando o vazio chega sorrateiramente e se instala no centro da mesa sem ser convidado, é porque todos os teus sentidos estão mudos: o olhar está parado, fixo em algum ponto do espaço; a voz outrora gargalhante é puro silêncio; o corpo não sente quase; e o som daquela música cava-te rios cuja fonte está secando...

Corpo cheio de pingos

nós apertados, marcas, manchas,
botões que não desabrocham
outros pétreos, calcificados no deserto
da pele ondulada e
 transida pelo vento ressecada
nas dobras dos doídos dias..

Corpo poroso
fios um dia brilhosos
de cabelos esvoaçantes caídos
vísceras revolvidas, revoltas, cortadas
pelas veias sangue que escorre
sem força já não bombeia o coração
que salta pelos olhos, pelo sexo.

Pela boca a voz da palavra:
FALA!

03/03/2012

Blog em eclipse...

Tal como o Sol cuja luz é ocultada quando a Lua se interpõe entre ele e a Terra
buscando novos alinhamentos, Cirandeira mergulhará temporariamente no vale das sombras em busca de um pouco de luz, de outros alumbramentos: MEHR LICHT!!!