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Nesses teus quadros ficaram os crepúsculos, as luzes difusas. As silhuetas são metades. Os olhos são perguntas. As cores são ocres e minerais.
Há ruínas e sonhos: dois vultos sobre um solo petrificado, aquele pássaro e aquele rosto sobre a lava vulcânica, e as marcas de pés negros negros sobre o amarelo pedregoso, texturizado. Ancestralidade é o que parece pairar sobre todas as tuas composições: o velho Parthenon, a cena de caça rupestre cintilando no alumínio, aquele estranho ser alado estranho-ser-alado em contraste com o fundo terroso que, por seu brilho ígneo, me remete à descoberta do fogo: salamandra. Teu ser-salamandra é fresta, uma passagem de fogo para outro mundo, a língua-de-fogo que desemboca nas cavernas e nas gargantas de nossos
antepassados.
Quanta saudade nesses cobres avermelhados contra o céu da prússia, nesse vermelho-de-óxido e na siena queimada, e até no amarelo ouro... Há saudade no amarelo quando iluminado pela tua lanterna medieval... Há saudade nas frestas, e há frestas por toda parte!, nas silhuetas, na salamandra-inseto e nos olhos que nos espreitam de teus quadros...Há frestas entre as metades e nas distâncias que nos separam da arte pré-histórica que você quis rememorar, a nostalgia de um tempo que não se viveu. E lirismo, também (permita-me dizê-lo!), de um tipo quase hipnótico, mas não fácil; do tipo que "ousa interrogar as idades"...
Você murmurou alguma coisa como as interjeições primitivas, aqueles indizíveis que o ancestral tentou balbuciar quando se entristeceu ou viu o sagrado pela primeira vez: quando descobriu o raio incendiando uma árvore, a criança agonizando, a lua saindo por detrás da primeira nuvem.E você nos mostra essas interjeições como verdes em vermelhos, como negros em amarelos, como acalantos e tristezas poéticas, algo para se ver e ouvir ao redor do fogo, com olhos de farolete. É a tua versão daquela canção feita de interjeições nascentes, nascidas da visão do mundo visto pela primeira vez.
Difícil imaginar lirismo mais radical. Ou mais triste.
Marcelo Novaes