DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

21/02/2014

Sofismas sobre literatura popular


Arte senufo, Costa do Marfim
 

O povo de hoje não é essa fresca e virginal fonte de toda a sabedoria e de toda a beleza que imaginam certos estetas do populismo: é o estudantado de uma péssima universidade, envenenado pelo folhetim da história em quadrinhos ou fotonovela, por um cinema para funcionários públicos e por uma retórica para meninas semianalfabetas e metidas.
O povo, tal como existia nas comunidades primitivas, talvez tivesse um sentido profundo e verdadeiro do amor e da morte, da piedade e do heroísmo. Esse sentido profundo e verdadeiro que se manifestava na mitologia, nos contos folclóricos e lendas, na cerâmica e nas danças rituais. Quando o povo ainda estava entranhadamente unido aos fatos essenciais da existência: ao nascimento e à morte, ao nascer e ao pôr-do-sol, às colheitas e ao começo da adolescência, ao sexo e ao sonho. Mas agora, o que é, realmente, o povo? E, sobretudo, como se pode tomá-lo como pedra de toque de uma arte genuína quando está falsificado, coisificado e corrompido pela pior literatura e por uma arte de bazar barato? Basta comparar a vulgaridade de qualquer estatueta fabricada em série para enfeite do lar ou para uma igreja contemporânea com um ícone popular, ou um fetiche africano, para perceber o enorme fosso que se abriu entre o povo e a beleza. Na tribo mais selvagem do Amazonas ou da África central, jamais encontraremos a vulgaridade, nem em seus vasos e vasilhas, nem em suas roupas, que hoje nos rodeiam por todos os lados.
Assim chegamos a outra conclusão que poderia parecer paradoxal: em nosso tempo, somente os grandes e insubordináveis artistas são os herdeiros do mito e da magia, são os que guardam no cofre de sua noite e de sua imaginação aquela reserva básica do ser humano, através destes séculos de bárbara alienação que suportamos.
Não é, em suma, o artista que está desumanizado, não são Van Gogh e Kafka que estão desumanizados, mas a humanidade, o público.
Contra os que pretendem, demagogicamente, que toda grande obra de arte seja majoritária e contra os que pretendem o contrário, creio que é fácil demonstrar que ambas as pretensões são sofísticas.
1. Há literatura grande e, no entanto, minoritária: Kafka
2. Há literatura minoritária e, no entanto, ruim: a maior parte dos poemas que se escrevem hoje, meros logogrifos ou logomaquias
3. Há literatura grande e majoritária: O velho e o mar.
4. Há literatura majoritária e ruim: histórias em quadrinhos, fotonovelas, literatura água com açúcar, quase toda a literatura policial

.Ernesto Sabato, em O escritor e seus fantasmas - Companhia das Letras.

2 comentários:

  1. SABATO SIEMPRE TAN COHERENTE. MUCHAS GRACIAS POR ESTE POST TAN INTERESANTE.
    UN ABRAZO

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