Sempre que posso, saio a pé pelas ruas da cidade. Onde quer que more, com ou
sem trânsito, é assim. Nada para mim substitui o contato direto com a rua, a ótica nua do pedestre e o exercício suave da condição de bípede reflexivo. Adoro
quando me acontece de poder caminhar até o local de algum compromisso ou encontro e considero um privilégio inconfessável o luxo de perambular a esmo, sem propósito definido, pelo simples prazer peripatético de espiar, devanear, ruminar.
Não é sempre, porém, que me permito o luxo desse esbanjamento. Só quando
sinto que cumprí alguma tarefa e, de certa forma, conquistei o direito de vagabundear um pouco. Na era do politicamente correto e da máxima eficácia em tudo, temo a chegada do dia em que o deleite inocente de se caminhar sem expectativa de ganho e sem propósito definido seja considerado um crime.
Um dia desses, não faz muito tempo, eu estava a poucos quarteirões de casa quando fui abordado na calçada por um homem de aparência humilde e jeito acanhado. Não era um mendigo. Parei e perguntei o que era.
Ele então apontou para uma pequena placa do canteiro de obras e me
pediu, assim meio de lado, se eu podia ler para ele o que estava escrito nela. Queria saber, explicou, se estavam oferecendo emprego.
Li a placa em voz alta ("vende-se material usado"), lamentei que não era o caso
e sugerí que fosse ao vigia da obra perguntar se estavam precisando de gente. Nunca mais o ví.
O episódio em si não durou mais que um par de minutos, talvez nem isso. Mas
a situação daquele homem simples procurando emprego, o dedo furtivo apontando a placa e a interrogação muda estampada em seu rosto expectante têm me acompanhado de forma intermitente desde aquela manhã.
A sensação imediata, enquanto andava de volta para casa, foi de um mal-estar
difuso e uma ponta de remorso. A estranha dignidade daquele gesto difícil mexeu comigo. Como aquele sujeito teria vindo parar alí? Teria família, filhos, dívidas? Ele não parecia desesperado. Mas até que ponto, eu me perguntava, as aparências revelavam o seu estado?
Comecei a pensar nas dificuldades e embaraços inusitados que alguém como ele enfrenta cotidianamente. Como se vira um analfabeto no cipoal urbano de São
Paulo? Como faz para encontrar um endereço, apanhar o ônibus certo, contar o troco, não ser trapaceado na quitanda da esquina?
O analfabetismo numa grande cidade chega a ser uma deficiência tão debilitadora quanto a cegueira ou a surdez. É todo um universo de informação que se fecha, que nunca se abriu. Como nós que lemos e escrevemos como quem respira e caminha podemos sequer vislumbrar o que possa ser isso?
E por que diabos não fui mais solidário? O que me custaria, afinal, ser mais solícito e tentar ajudá-lo a se orientar um pouco? Podia, ao menos, ter perguntado se precisava de dinheiro para tomar uma condução. Invertí, na imaginação, os papéis: o que eu, no lugar dele, esperaria de alguém como eu? Vontade (abstrata) de voltar no tempo, ser melhor do que fui. Era tarde. Será diferente da próxima vez?
Eduardo Giannetti, economista, nascido em Belo Horizonte(MG), 1957.
Esse texto foi escrito em 1998.