DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

08/08/2011

O beijo

Constantin Brancusi




Coincidência ou não, aconteceu justamente na esquina do poeta, naquele pedaço de calçada em que as pedras portuguesas formam versos de Drummond. Ali, na fronteira entre Copacabana e Ipanema, a tarde caía. Mas ainda havia luz. O entardecer de outono descia lentamente sobre os prédios, em cujos topos, para além da vegetação das coberturas, brilhava um céu de azul intenso.
Cá embaixo, na calçada, embora ainda houvesse luz, soprava um ventinho frio, que em junho passa ali como num corredor, provocando arrepios nas nucas descobertas, do Castelinho ao Posto Seis. As pessoas iam apressadas, com as golas dos casacos levantadas, porque qualquer brisa mais fresca faz tremer esse animal solar que é o carioca.
Era um dia de semana e o trânsito, àquela hora, já estava apertado. Ao volante, eu esperava o sinal abrir quando reparei nos dois. Estavam de pé junto ao meio-fio, semi-encobertos por um poste de luz. Um casal - ambos seguramente com mais de 70 anos.
No instante em que pousei os olhos neles, houve o abraço. E depois o beijo. Um beijo de amor entre homem e mulher, que nada tinha de fraterno, um beijo com qualquer coisa de sôfrego, de apressado. Um beijo de despedida.
E em seguida, de fato, separaram-se. O trânsito recomeçava a fluir quando o homem estend eu a mão, chamando u m táxi. A mulher sorriu, antes de embarcar. E, de dent ro do carro, ainda virou-se e deu adeus pelo vidro de trás. Em resposta, o homem fez uma leve curvatura para a frente, como o galanteio de um cavalheiro com quem se acaba de dançar.
Havia nos gestos de ambos uma história e eu logo imaginei um conto de encontros furtivos, de tardes de amor em Copacabana, caminhadas até a esquina, beijos com sabor de proibido.
Cheguei a pensar em acompanhar o táxi para continuar observando a mulher, mas ele virou na Canning, desapareceu. E eu segui em frente, desembocando no poente de Ipanema com aqueles dois na retina.
Na minha mente, a imagem do beijo se repetia, ganhando contornos mais definidos, um cenário cada vez mais vivo. Dava-se de repente em câmera lenta, um beijo de amor no centro de um rodamoinho, onde voejavam folhas de outono. Um beijo deItálico amor outonal, com uma beleza própria, peculiar.
Segui pela praia com o sol já caindo, deitando uma luz dourada na calçada de pedras portuguesas, onde àquela hora havia uma multidão, incluindo muita gente de idade. E fiquei pensando. Não é em qualquer lugar do mundo que duas pessoas mais velhas se beijam no meio da rua, um beijo ardente, com tamanho despudor. É preciso ter em torno uma cidade lasciva, irreverente, docemente permissiva e sensual.
E que bom que o Rio é um cenário assim.


Em Contos Mínimos, de Heloísa Seixas, jornalista e escritora nascida no Rio de Janeiro em 1952.

6 comentários:

  1. Ci, que texto bem escolhido e que imagem danada de boa :)
    Beijoss

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  2. Fiquei tão emocionada quando lí esse texto, tão bonito, tão verdadeiro! É um testemunho da eternidade do amor: sem fronteiras,
    sem idade e sem preconceitos! Ainda não tinha lido nada dessa escritora, e fiquei simplesmente encantada com o seu texto!

    beijoss

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  3. Conheci o Rio, há quase 30 anos atrás, fazendo um treinamento, por uma extinta multinacional. E já era esse ambiente de liberdade e de aconchego. O povo do Rio antecipa o que de bom irá acontecer nas relações humanas. Creio que a belíssima paisagem ajuda rsrsrs

    Abraço fra/terno.

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  4. O Rio é uma cidade linda, e realmente tem uma atmosfera de maior abertura nas relações entre as pessoas, nos costumes...a própria geografia da cidade favorece para que isso aconteça. E Copacabana é um bairro onde está concentrado um número maior de pessoas com mais idade e com uma qualidade de vida acima da média nacional. Acho isso muito bom...!

    Abração, Eurico

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  5. Que texto. Que imagem. Que vontade!

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