O infame discurso do louco
O tema literatura/loucura, recorrente nos debates da atualidade desde pelo
menos meados da década de 1970, quando o trabalho de Michel Foucault sobre a supressão do discurso do louco pela psiquiatria ganhou, enfim, credibilidade e interesse no meio científico e literário, continua sendo dos mais ricos e prementes. Em sua História da loucura, de 1961, Foucault transcende a mera história da psiquiatria para expor como a loucura fora “percebida” em determinadas fases da cultura ocidental – com o consequente desprezo ou a supressão do discurso do louco, considerado a priori “infame” e desautorizado pelos vários segmentos sociais: do científico ao literário e ao poder público.
Não é de estranhar, portanto, que durante a década de 1860 se dissesse em Porto Alegre de um determinado senhor, até então respeitado como mestre-escola, comerciante, vereador e escritor, que “por ordens médicas deveria parar de escrever”. Era José Joaquim de Campos Leão, que passaria à história da literatura brasileira com o esquisito nome de Qorpo Santo e sobre quem pesou com todo o rigor o interdito da ciência. Em um tempo no qual para o “louco”, denominação genérica que abrangia todos os que apresentassem distúrbios mentais ou desvios de comportamento, recomendava-se repouso, boa alimentação, duchas geladas, desligamento completo das funções sociais e, naturalmente, um implacável confinamento em instituições especializadas.
Felizmente, Campos Leão não obedeceu aos médicos. Recorreu da interdição legal que fora pedida pela sua própria esposa, que alegou “monomania e má administração dos bens da família”, e empenhou o restante dos seus anos na luta contra o saber psiquiátrico e na fruição de delírios de complicado feitio, nos quais, em textos de estranha ortografia, se dizia mesmo enviado de Deus e às vezes travestido de Napoleão III.
No ano de 1866, refugiado na escrita mais do que nunca, escreveu em cinco meses 17 comédias que hoje constituem um precioso legado e são reconhecidas como precursoras de movimentos teatrais que marcariam época muito mais tarde: o surrealismo de André Breton, na década de 1920, e o Teatro do Absurdo, presente do final dos anos 1940 até o final dos 1960. Um século mais tarde, sua obra, redescoberta afinal no torrão natal, transforma-o no “nosso Ionesco” e permite que um crítico como Sábato Magaldi diga dele: “Caso isolado, escrita inclassificável pelos padrões da época em que viveu, passou a perturbar os esquemas sabidos do romantismo ou da triunfante comédia de costumes no século passado. Hoje, seria impossível descartá-lo.”
Cecília Prada em Revista da Cultura - Agosto, 2011
Curiosíssimo caso. Assim como o Sousândrade. Embora a excentricidade literária deste não seja associada à loucura
ResponderExcluirNão há como não lembrar do Bispo do Rosário. Napoleão III... Lembrei também do Rubião do Quincas Borba. Hum, e daí vamos ao Alienista...
Beijo.
...E daí vamos para uma infinidade de casos, o que só faz aumentar as
ResponderExcluirpulgas atrás de minha orelhas!
Tanta gente "normal" cometendo
tantas insanidades e estão por aí (e por aqui!)soltinhas da silva, atormentando as nossas vidas...!? E, o que é pior, sem criar nada de bom, de interessante...!?
beijos