DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

23/08/2011

"Lima Barreto é compadre de Tolstói"






O compadrio ou a amizade entre compadres é uma das relações sociais mais fortes ainda hoje em várias partes do Brasil, inclusive, por vezes, mais do que as consanguíneas. Especialmente quando se dá via batizados e o padrinho é uma espécie de pai com a função de estar presente na vida do afilhado, ensinando-o a seguir o bom caminho. Pois um dos mais inusitados compadrios acaba de ser revelado em duas publicações: a relação estabelecida entre o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) e o Conde Leon Nikoláievich Tolstói (1828-1910).
Os trabalhos que apresentam esta relação foram feitos por pesquisadores de literatura de lugares, gerações e trajetórias completamente diferentes: o do inglês Robert John Oakley, Lima Barreto e o destino da literatura, já nas livrarias, e o João Antônio, leitor de Lima Barreto, de Clara Ávila Ornellas, no prelo, a ser lançado em outubro. Ambos revelam que o escritor brasileiro teve em suas obras intenso diálogo e afinidade com o colega russo, tendo-o como uma das principais balisas estéticas para construir sua vasta obra composta de romances, contos, crônicas, reportagens e ensaios. Ornellas desconhece outro caso de tão extrema relação entre o pensador russo e um brasileiro.
Ambos os trabalhos abrem novas perspectivas não apenas para os estudos literários, mas para pesquisas focadas em estudos culturais ou do trânsito das ideias – especialmente entre Brasil e Rússia. O processo de escuta fina dos dois estudiosos deu-se a partir da leitura e apreensão do grande ensaio derivado de uma palestra não dada por Barreto e publicada em 1921, O destino da literatura, no qual lança as suas bases estéticas e localiza como referência o tratado O que é arte?, de Tolstói. No caso de Ornellas, forte evidência se deu ainda ao ler o ensaio Amplius!, também de Barreto.
Eles atestam a importância e atualidade da obra de Barreto para pensar problemas estuturais que ainda persistem no Brasil. Entre eles, destacam-se a discriminação racial e a legião de excluídos – especialmente nas grandes cidades. Para Oakley, Barreto conseguiu mapear e expressar uma séria luta de discursos oriundos dos mais variados lugares da sociedade, “espetáculo cuja intensidade é talvez única em toda a prosa latino-americana”, fazendo dele um autor da maior importância.
Para Ornellas, a escrita barretiana é singular por focar uma realidade à margem da sociedade. Numa época em que se propagavam a estética estrangeira ou os valores clássicos como padrões de arte a serem seguidos, este escritor traz para o espaço literário as casinhas simples do subúrbio com a substância humana que as compõem. Outro aspecto importante em toda sua obra “é tratar questões da atualidade, debatendo criticamente os rumos da sociedade brasileira, principalmente a falta de preservação de memória histórica, as contravenções políticas e sociais orquestradas pela classe dominante e o acirramento das diferenças de classes como ferramenta de opressão econômica, racial, social, perpetuando a manutenção do poder nas mãos de poucos.”

Livro único

Oakley acumula mais de 40 anos de pesquisas e docência em português e espanhol na Universidade de Birmingham. Desde 1970, passou a pesquisar vida e obra de Barreto, do que resultou em sua tese de doutorado publicada como The Case of Lima Barreto and Realism in the Brazilian ‘Belle Époque’ (Edwin Mellen Press, 1998). A edição brasileira ganhou aspectos outros ao manter-se a par da produção barretiana no Brasil e faz desta versão, em muito revisada e atualizada, um livro único.
Oakley levanta entre as principais matrizes de Barreto Hippolyte Taine, Ferdinand Brunetiére, Jean-Marie Guyau e o estudo de Tolstói sobre arte. No seu percurso, prova como estes autores, e especialmente o russo, embasaram sua forte convicção de não fazer arte pela arte – como era comum no início do século passado – e ver como missão literária o promover a solidariedade e a fraternidade social. Para ele, Barreto é movido pelo grande desejo de comunicar uma ideia ou ideias à humanidade e pela humanidade, especialmente como apaixonado leitor de Tolstói.
O miolo do estudo de Oakley é a tese de que Barreto “exprime uma tentativa de dramatizar, como artista tolstoiano, o destino do escritor neste mundo”. Ele cita o romance inacabado Clara dos Anjos, no qual existe uma “forte dimensão histórica, que seria, portanto, um protesto contra a prolongada perseguição ao negro brasileiro”, especialmente em uma república que se diz do e para o povo, mas promove a exclusão social em massa.
Desde o seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Barreto assume a profunda crítica de como os seus contemporâneos exerciam a frivolidade e o interesse por Paris, insistindo em ficar de costas para o seu próprio país. E Tolstói pontificou, “se quer ser universal, fale de sua aldeia”. Assim como o pensador russo, desde a sua primeira obra até a última, Barreto quer comunicar e discutir a sua realidade com o homem de seu tempo.

Tolstoísta à sua revelia

Em seu doutorado na Universidade de São Paulo, Clara Ornellas estudou em profundidade a obra de João Antônio (1937-1996). Importante escritor e jornalista brasileiro, ele dedicou a maioria de suas obras a Lima Barreto, curiosidade que levou Clara a fazer seu primeiro pós-doutorado exatamente para descobrir o grau dessa relação. O resultado desse estudo foi conclusivo: João era realmente influenciado pelo autor brasileiro. A partir disso, a pesquisadora imergiu em Barreto, descobrindo o compadrio explícito com Tolstói. Tal fato a levou a Portugal para levantar obras de e sobre o russo e escrever João Antônio, leitor de Lima Barreto. No livro, há um capítulo denso e necessário sobre Tolstói. E uma das coisas mais interessantes nesse trabalho é descobrir que João Antônio era um tolstoísta à sua revelia, demonstrando que a influência dele no Brasil não estava limitada apenas às duas primeiras décadas do século passado.
Quanto à presença de Tolstói em Barreto, Ornellas destaca um trecho de Amplius! sobre a visão de literatura do brasileiro. “Parece‑me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder, e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si”.
Ornellas constata que esta passagem revela a linha direta entre o pensamento de Barreto e Tolstói, principalmente da arte como forma de melhorar o homem e sua relação com os seus pares e o mundo à sua volta. Lima Barreto demonstra solidariedade pelos “infelizes do subúrbio” ou da margem social, o mesmo que se dá com João Antônio.
Esse amor misericordioso dos dois escritores brasileiros pelo “lixo humano social” é próximo ao pensamento de Tolstói, que vê na solidariedade e fraternidade o melhor rumo para construir uma sociedade justa. Da mesma maneira, a luta e a denúncia dos dois autores brasileiros contra as injustiças sociais revelam como optaram por dedicar suas obras aos menos favorecidos da sociedade.
Se, para Barreto, “o destino da literatura” era melhorar as relações entre os homens, não é em nada diferente quando João Antônio defende uma literatura que seja como “um corpo a corpo com a vida”. Os lançamentos de Oakley e Ornellas desvendam aspectos inéditos sobre Lima Barreto e dialogam apesar dos objetivos diferentes, revelando a importância do pensamento de Tolstói no Brasil.


Gutemberg Medeiros, Revista Cultura, Agosto 2011

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