DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

03/03/2013

Crônicas brasileiras

Teatro Municipal, 1920-1927
 
 
Genialidade brasileira
 
 
 
Confusão. Sempre confusão. Espírito crítico de antologia universal. Lado a lado todas as épocas, todas as escolas, todos os matizes. Tudo embrulhado. Tudo errado. E tudo bom. Tudo ótimo. Tudo genial.
Olhem a mania nacional de classificar palavreado de literatura. Tem adjetivos sonoros? É literatura. Os períodos rolam bonito? Literatura. O final é pomposo? Literatura, nem se discute. Tem asneiras? Tem. Muitas? Santo Deus. Mas são grandiloquentes? Se são. Pois então é literatura e da melhor. Quer dizer alguma cousa? Nada. Rima, porém? Rima. Logo é literatura.
O Brasil é o único país de experiência geograficamente provada em que não ser literato é inferioridade. Toda gente se sente no dever indeclinável de fazer literatura. Ao menos uma vez ao ano e para gasto doméstico. E toda gente pensa que fazer literatura é falar ou escrever bonito. Bonito entre nós às vezes quer dizer difícil. Às vezes tolo. Quase sempre eloquente.
O cavalheiro que encerra a sua oração com um Na antiga Roma ou como disse Barroso Na célebre batalha, é orador. Orador, só? Não. Orador de gênio. O cavalheiro que termina o seu soneto com um  Ó sol! É raio! Ó luz! Ó nume! Ó astro! É poeta. Também genial. E assim por diante.
Só a gente se agarrando com Nossa Senhora Aparecida.
Essa falsa noção da genialidade brasileira é a mesma do Brasil, primeiro país no mundo. Não há cidadão perdido em São Luís do Paraitinga ou São João do Rio do Peixe que não esteja convencido disso. E porque o Brasil é o campeão do universo e o brasileiro o batuta da terra, tudo quanto aqui nasce e existe há de ser forçosamente o que há de melhor neste mundo de Cristo e de nós também. Todos os adjetivos arrebatados e apoteóticos são poucos para tamanha grandeza e tamanha lindeza. Ninguém pode conosco. Nós somos os cueras mesmo.
Qualquer coisinha assume aos nossos olhos de mestiços tropicais proporções magnificentes, assustadoras, insuperáveis, nunca vistas. O Brasil é o mundo. O resto é bobagem. Castro Alves bate Victor Hugo na curva. O problema da circulação em São Paulo absorve todas as atenções estudiosas. Sem nós a Sociedade das Nações dá em droga. Vocês vão ver, Wagner é canja para Carlos Gomes. Em Berlim como em Sydney, em Leningrado como em Nagasaki só temos admiradores invejosos. O universo inteiro nos contempla. Êta nós!
É por isso que seria excelente de vez em quando uma cartinha como aquela de Remy de Gourmont a Figueiredo Pimentel. Um pouco de água gelada nessa fervura auriverde. Para que o trouxa brasileiro caia na realidade. Deixe-se dessa história de gênio, grandeza, importância e riquezas incomparáveis que é bobagem.
E não é verdade.
 
Alcântara Machado, em Antologia de humorismo e sátira.
Jornalista e escritor, nasceu em São Paulo, Capital, em 1901 e faleceu precocemente em 1935.  

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